Ler contos do Roberto Bolaño me deu vontade de escrever e eu não sei nem porquê. Por que não desenhar, em vez disso? É inspiração mesmo isso no fim das contas? Colocar as palavras no papel, contar uma história, contar várias histórias dentro de uma, ou não contar história nenhuma – se é que é possível, na real acho que é. As histórias dentro de histórias dele parecem lhe ser algo muito caro. Não só a literatura em si vira um tema, como a ficção, frequentemente tem alguém contando uma história de alguém, mesmo que de forma meio solta e quase imperceptível. As histórias vão se conectando, acho que esse é o grande lance dele. A ficção é intrínseca às nossas vidas, parece, segundo Bolaño. Todo mundo tem histórias, de algum jeito. Isso aqui é uma história? Sinceramente duvido, mas em algum nível talvez seja. Ela só não foi pensada, não sei direito onde começa e onde vai terminar, mas há desenvolvimento suficiente aqui pra esconder uma narrativa debaixo dessas elucubrações. Pode ser que haja. Será que sempre há uma história, mesmo quando não parece haver? O que define uma história? É a necessidade de conflito? É o interesse do leitor, puxá-lo com acontecimentos? O leitor realmente interessa nessa equação? Os dois lados – autor e leitor – são fenômenos que nem sempre se encontram, mas não me parece necessário que isso ocorra, seja em que nível for. É claro que sempre se escreve “pra alguém”, mesmo que esse alguém seja o próprio autor, então talvez haja sim uma conexão entre esses dois elementos mesmo que fora do campo do entendimento, e da noção do que é uma história. Talvez isso esteja além de escrever bem, no fim das contas. Mas o escrever bem ainda é uma indefinição. O espanhol – a língua – parece facilitar certas coisas, certas criações, certas poesias na escrita. As definições de significados parecem mais soltas naturalmente, a língua parece fluir, parece se desprender, e isso ocorre também em Borges por exemplo. É uma língua bonita, mesmo que traduzida. Parece que eu acabei o texto do nada como nos contos do Bolaño, e essa é parte da graça dele. As histórias são contatos rarefeitos entre as pessoas, entrecortadas pelo tempo. Nunca sabemos por inteiro quem são os personagens, sejam os narradores ou os narrados. Tem um mistério sempre, uma coisa que fica no ar, indefinida, como se o corte na história fosse só um pouco antes do final verdadeiro. E aí o final verdadeiro se torna outra coisa, mais misteriosa, e que nos deixa com um buraco pra preencher. Esse buraco talvez seja a inspiração.
A minha saúde anda tão mental ultimamente que eu até esqueci de comentar aqui que semana passada saiu o trailer do curta em que vim trabalhando de um tempo pra cá e que eu comentei faz uns meses. Tá quase pronto, e tá prestes a sair: dia 26/10 é a estreia oficial na minha cidade e a ideia é começar a largar ele em festivais por aí, quem sabe em um pertinho de você! Segue o trailer, que tá no canal da minha co-diretora:
As reações ao trailer estão esfuziantes
Em notas relacionadas, saiu um clipe em que eu fiz direção de fotografia e edição pro meu broder Lúdi Lucas
Tudo isso cria da Lei Paulo Gustavo, olha aí que beleza.
O Grande Mestre Beberrão (Come Drink With Me, 1966) é mais um dos clássicos dirigidos pelo King Hu. Um dos filmes essenciais do retorno do wuxia dos anos 60 mas que ainda não é o wuxia que ficaria famoso principalmente na década seguinte. Aqui, a ação fica quase toda nas mãos do Hu, e a grande graça é essa: ele controla tudo com base na montagem e no controle do espaço fílmico. Quase como se os personagens dele só tivessem poderes fantásticos graças à forma sua forma de filmar.
Todo enquadramento é muito sagaz, todo corte tem uma razão de ser. Já falei aqui de outra obra-prima dele, Dragon Inn, então não vou ficar me repetindo porque muito do que eu disse lá vale pra esse também. O lance é que O Grande Mestre Beberrão parece um pouco mais dinâmico, e a história é um pouco mais contida. Aqui também parece haver mais espaço pros atores (em especial a protagonista) mostrarem um pouco de suas habilidades no kung fu.
Tem no Mubi.
NO EPISÓDIO ANTERIOR: Brenda liga pra mãe e vai tudo muito bem! Como é bonita a emoção de voltar a falar com a família. E Valdir está claramente revigorado, é um novo homem, sedento pelas muitas aventuras que hão de vir pela frente. Se ele não tiver que brigar com ninguém.
s03e04: uma Surprezebra trota
Apesar do caos, existe uma coesão. Um sentido. Uma certa calma. A tempestade despenca sobre a selva, devassando a terra. As folhas amarelas estão encharcadas pela água azul-neon, as árvores balançam com o vento inacreditável. Os poucos animais se escondem onde conseguem. O vento muda de direção como se estivesse brincando de pega-pega. A chuva vai junto, seu brilho atravessando as sombras. Aqui, o clima é quase sempre assim. E tudo parece funcionar, dentro da lógica da natureza.
Destruindo essa lógica: um monstro de quatro rodas e um motor 6.0 movido a diesel. Urrando, brigando para atravessar uma trilha onde ele mal cabe. O lamaçal lutando contra sua passagem. Mas o monstro prossegue, do jeito que dá. As rodas de um metro de altura girando para um lado, depois para o outro. A chuva não permite que o motorista veja a um metro de distância para fora da caminhonete. Ele só acredita. Porque aparentemente é tudo que restou para ele, acreditar.
Seguir em frente. Cagado de lama e chuva, Herivelto está no terceiro dia de selva e o tempo não mudou muito para além disso. Ele sabe que depois dessa selva há uma mansão do Khepresh, e ali ele vai atingir um novo nível dentro do esquema. E aí sim sua vida vai mudar para melhor. Ter atravessado todas essas áreas inóspitas e correr todo esse perigo vai ter valido a pena. É tudo que restou para ele.
Ele sempre desvia desse pensamento, como se não quisesse acreditar. Herivelto só vai.
A trilha parece finalmente se dissipar e por um momento parece que a chuva diminuiu, o que parece ser pelo menos uma boa notícia. A má notícia é que a trilha se transforma numa ponte tosca. Abaixo dela, um rio se desespera, chiando, tentando destruí-la com pequenos pingos d’água. Cordas mal amarradas tentam segurar pedaços de madeira, defendendo a ponte na medida do possível. O possível é muito pouco.
Herivelto olha para a estrada. Vinte metros para atravessar o rio. No meio do temporal, com o rio fatal por baixo, por essa ponte que parece estar com mais medo que ele. Limpa os olhos. Respira fundo. Dá duas batidinhas de incentivo no painel do Hierofante.
Engata a primeira marcha novamente e acredita.
Os dois primeiros metros são relativamente tranquilos. Quando a caminhonete está inteira sobre a ponte é que esta começa a bambear. Herivelto precisa ir devagar. Há pedaços faltando na ponte. Ele segue acelerando. Vira o carro um pouco para o lado, tentando equilibrar tudo. Alguns metros à frente, uma das rodas quebra um pedaço da ponte. Herivelto desvia, vagarosamente. Não tem muito o que ver à frente. Ele segue. A ponte balança. Um pedaço de madeira cai lá atrás no começo da ponte. Sete metros já foram. Herivelto está molhado de água e suor e talvez mais alguma coisa. Controla a besta motorizada do jeito que consegue. Ela escorrega com o vento e a água na madeira. A ponte parece ter nojo deles e quer jogá-los dentro do rio. Herivelto e o Hierofante lutam de volta. O rio passa por baixo deles, gargalhando seu chiado. Doze metros. Herivelto tem vislumbres do final da ponte. Outro pedaço de madeira quebra à sua frente, o Hierofante parece preso. Herivelto acelera, nada acontece. Acelera mais. E mais um pouco. A caminhonete grita e atravessa mais um pedaço da ponte. Um novo toco de madeira vai parar no rio. Herivelto não o vê indo embora. Mas vê um galho enorme caindo na frente do carro. Quinze metros e ele está parado na ponte. Ele é obrigado a tirar a espada de sua mochila e cortar o galho, sem sair do carro, pendurado pela janela. Algumas estocadas e o galho desiste. Menos mal. Herivelto empurra o galho para fora da ponte e o carro atropela o que restou dele. O Hierofante acelera quando a madeira da ponte começa a rarear e as cordas estão prestes a largar tudo para deixá-los cair no rio de uma vez por todas. Herivelto percebe. Elas estão cedendo. Ele não. Ele pisa no acelerador. Dezoito metros. Dezenove. As duas rodas de trás ainda estavam na ponte quando ela cedeu completamente, mas o Hierofante chegou do outro lado. Herivelto nem sequer olha para trás ou comemora. Só segue.
* * *
O mármore branco do hall de entrada da mansão é conspurcado por uma trilha de lama marrom-amarelada. Herivelto está no fim da trilha, em pé, esperando por qualquer coisa. Olhando em volta. Uma massa de terra molhada que se confunde com roupas e um pouco de pele aqui e ali.
Um mordomo lhe oferece um copo de água, que Herivelto bebe em dois goles inúteis para matar sua sede. Vinte minutos depois, o chefe da mansão lhe recebe. Um homem-dragão usando óculos escuro, de roupão e pantufa, bebendo uma gim tônica.
– Olha só quem chegou! – diz o homem-dragão, de braços abertos. – Finalmente, eu estava esperando por você. – Uma pausa para beber um gole. – Como é o seu nome mesmo?
– Herivelto.
– Herivelto! Muito prazer, eu sou Klebso. – Ele se mantém a dois metros de distância de Herivelto. – E você é um Aventureiro Khepresh nível…
– Nível Prata 9.
– Olha só! Como você tá avançado. – Mais um gole. – Me diz. O que você tem de vendas aí?
Herivelto lhe estende uma bolsa suja, pingando lama. Klebso leva um pequeno susto e faz um gesto para o mordomo levar o objeto pra longe dali.
– Mas, Herivelto, vem conhecer a mansão enquanto o Márcio conta o que você tem.
Klebso caminha batendo as pantufas enquanto aponta as dependências do casarão, sem sair do hall de entrada. Lá em cima os doze quartos, aqui a cozinha industrial, ali fora a piscina, aqui a sala de jogos, lá do outro lado o cinema particular. Ao final da apresentação, Márcio aparece e fala algo no ouvido de Klebso. O homem-dragão arregala os olhos e abre um sorriso.
– Olha só, Elivelton! Que legal, você acabou de subir pro nível Ouro 1! Parabéns!
Herivelto apenas sorri, sem forças, e junta as mãos agradecendo.
– É uma pena que a mansão seja só pro Nível Diamante pra cima, né? Mas olha, como um Aventureiro de Nível Ouro 1 você finalmente tem acesso ao aluguel de um dos cavalos do nosso haras, além de uma espada Nível Ouro e uma armadura Nível Prata. E o mais importante, o botton dourado! Você é foda, Eriberto! – Klebso faz um sinal com a cabeça para Márcio, que pega a mão direita de Herivelto e o cumprimenta.
A boca de Herivelto treme. Ele está tentando esboçar um sorriso, mas por algum motivo ele sai com mais dificuldade do que ele quer. O que sai com mais facilidade são as lágrimas dos seus olhos. Ele só não sabe o porquê.
🌀
Os olhos de Valdir e Dona Isolete se incomodam um pouco com o quanto o cenário à sua volta parece ter um brilho próprio. A grama parece com várias placas de vidro triangulares coladas umas nas outras, formando uma planície que foge aos olhos. O céu é extremamente azul. As árvores em volta parecem ter sido lapidadas, suas cascas e folhas são lisas. E elas são quase todas exatamente iguais.
Pelas moitas feitas de folhas achatadas como papel, saltitam os habitantes do local. Dona Isolete está curiosa, mas eles se escondem. Um deles passa correndo sobre os pés de Valdir e ele consegue, após sentir uma pontada na lombar, agarrar sua cauda. É um tipo de rato cinza, mas não um rato comum: é como se fosse um bicho de pelúcia vivo com formas mais retas. Do tamanho de um poodle. Seus olhos são grandes e fofos, suas orelhas vibram sozinhas enquanto ele guincha como se fosse uma pessoa gargalhando e mexe suas mãos de chimpanzé. Valdir tenta entender o animal que se debate na sua frente. O rato consegue dar um impulso para atacar Valdir: um dedinho que visa sua axila. No impulso, Valdir se protege e acaba deixando o rato cair. O bicho sai correndo para dentro da moita, rindo. Valdir fica confuso. Dona Isolete parece entender ainda menos.
– Vocês parecem perdidos – diz uma voz atrás de uma árvore.
Três segundos depois, Valdir tira sua espada da bainha e se coloca em posição de batalha. A voz não lhe é estranha.
Um som robótico de engrenagens de metal se remexendo anuncia a silhueta que vem da mata fechada. Pernas que se movem num ritmo lento, uma por vez, sem pressa. Os pés de aço batem na grama reta. Aos poucos, chegando ao sol. Os pés emulam pés humanos de uma forma apenas vaga. As canelas e as coxas são formadas por cilindros metálicos interligados, envoltos por placas de aço escovado. O resto do corpo, ainda que o tronco seja humano, também é protegido pelas placas, e a cabeça ostenta um capacete com um visor preto.
– O que vocês viram se trata de um Ratannoying. Ele gosta de incomodar os outros, por isso é assim. – A voz humana é abafada pelo elmo.
Dona Isolete e Valdir focam sua atenção no ciborgue.
– O quê? Vocês ainda não me reconheceram? – O capacete despressuriza parte da nuca e isso destrava um pedaço dele, o que permite que o homem o desencaixe da cabeça. Debaixo do elmo, surge o rosto sorridente e encharcado de suor de Iussuque.
– Peraí – diz Valdir –, você não é aquele cara que…?
– Sim, Valdir! Iussuque! O homem que vai acabar com a tua raça por vingança! Não é possível que você nunca lembre de mim.
– A minha memória anda um pouco… avariada.
– Pois eu vou avariar ela totalmente então!
Da coxa de Iussuque, um compartimento se abre zunindo. Ele retira dali um revólver com um cano de dois palmos e o aponta para Valdir.
– Chega dessa merda! Eu vou acabar com você, e é agora.
– Calma! – diz Dona Isolete, se colocando à frente de Valdir. – Da última vez que você encontrou a gente, você não quis enfrentar o Valdir porque ele não estava inteiro. Olha pra ele agora.
Iussuque começa a notar. De fato: a cabeleira se foi, a barba está tosca, o corpo está mais magro. Ele parece mais fraco, mais frágil.
Não é o Valdir de quem ele buscava se vingar.
– Porra, aí vocês me fodem. Como assim, Valdir?
– Foi o efeito da Maravilha Curativa do Moacir. O Valdir morr… quase morreu.
Iussuque ergue uma sobrancelha. Maldito Moacir. Ao seu lado, pulula um girassol com o corpo em formato de gancho. Rapidamente Iussuque puxa sabe lá de onde uma pequena caixa cúbica e a joga no girassol. A planta começa a girar e seu tamanho diminui até cair dentro do cubo.
– Eu ainda não tinha um Interrogassol. De qualquer forma, eu ainda preciso me vingar de você. Chega dessa brincadeira. – Junto com a arma, Iussuque ergue o cubo. – Vingarto! Você é minha escolha!
O cubo se abre e de dentro dele salta um lagarto vermelho que rapidamente fica do tamanho de um jacaré. Há fumaça saindo de suas narinas. Ele dá pequenos e ameaçadores passos na direção de Dona Isolete e Valdir. Este responde apontando sua espada para o monstro. Iussuque percebe os braços finos de Valdir tremelicando. Será o peso da espada? Ou então…?
De uma moita por trás de Dona Isolete e Valdir surge saltitando apressadamente um coelho roxo de olhos esbugalhados.
– Um Medoelho – comenta Iussuque.
– Mas o que…? – Dona Isolete ainda não entendeu direito o que se passa aqui.
– Vocês não conhecem os Emons? São esses monstros que surgem a partir das emoções das pessoas.
– Eu não tô com medo – diz Valdir.
– Talvez seja um pouco eu, Valdir…
– Eu NÃO TÔ com medo!
O Vingarto caminha na direção deles. Seus olhos amarelos sem pupila parecem sugar a alma de quem os vê. Uma dezena de Medoelhos saltam em volta deles. A espada de Valdir treme, apontada para o Vingarto.
Iussuque os observa. De que lhe adianta vingar-se de um Valdir desse jeito? Essa luta seria vergonhosa para todos os envolvidos. Valdir mal parece digno de uma vingança. Ele parece já sofrer o suficiente. O prato frio desta vingança já apodreceu.
Valdir empunha sua espada com as duas mãos, na frente de Dona Isolete. O Vingarto dá mais um passo até eles, dando uma ligeira baforada de fogo no ar. Até que ele para. Uma luz azulada surge atrás dele, e a suga para dentro do cubo. Iussuque guarda o cubo num bolso secreto. Valdir fica sem entender.
– Isso não faz mais sentido – diz Iussuque. – Você nem merece a minha vingança. Olha só pra você, o seu estado.
Valdir faz uma careta. Atrás dele, surge uma Ofendoninha, chiando.
– Vou deixar você seguir em frente, Valdir. – Iussuque olha para o céu. – Nossa história acaba aqui. É outra de seguir em frente.
Iussuque guarda a arma em seu coldre barulhento e foguetes nas solas de seu pé o fazem levantar voo.
Valdir tem uma ideia.
– Espera! – ele diz. Iussuque desce e se aproxima cautelosamente.
– Eu acho que… é hora de começar uma nova história, então. – Valdir fala isso olhando para Dona Isolete.
Quando Valdir conta aos outros dois sua ideia, uma Surprezebra trota em volta deles. A ideia vai aos poucos fazendo sentido. Iussuque acha estranho, mas após pensar um pouco, percebe que é um caminho interessante. Dona Isolete compreende.
Eles conversam. Ela agradece. Valdir agradece também. Eles se abraçam. Um Tristatu se enrola numa moita.
Então Valdir segue seu caminho adiante, enquanto Dona Isolete vai para outro lado junto de seu novo segurança.
つづく