Não Sei Desenhar ₔ156 - 11/10/24
Entrada: Nimesulida. Prato principal: Tylenol Sinus. Sobremesa: Dexmine
Revi meio ã passã esses dias The Taking of Pelham 123 (O Sequestro do Metrô), o original mesmo, de 1974: continua muito bom. Um suspense muito pé no chão que eu não consigo deixar de pensar que tem uma vibe muito Independence Day na forma como ele coloca as piadas no meio da tensão e da correria. Dá pra ver que tem um estilo e uma elegância na forma de filmar e narrar mesmo debaixo da fotografia seca e na falta de firulas generalizada. As cadeias de poder se entrelaçam todas e isso se torna uma camada extra de suspense: o filme envolve em grande parte pessoas ligando umas pras outras incessantemente, e quem faz as coisas funcionarem de verdade são os trabalhadores, os que estão ali botando a mão na massa de alguma forma. Tem algo de Shin Godzilla em algum ponto dessa preocupação com a burocracia do pagamento do resgate e tal.
O timing cômico tá tinindo tanto na edição como na atuação de gente como o Walter Matthau e do Jerry Stiller (aka pai do George Constanza). O plano final, galera. E porra, a trilha sonora.
Tem no Prime Video.
O Spotify, veja só você, tem seus problemas. Ele vai dizer que o artista chamado “Faith”…
… é o mesmo que lançou nos anos 80 em Washington um álbum de hardcore proto-emo. Na real essa era a banda do irmão do Ian Mackaye, que na época teve o Minor Threat e depois foi fundar o Fugazi.
Nas novidades, tem o novo do The Smile, banda que não custa recomendar de novo: projeto do Thom Yorke e do Johnny Greenwood, ambos do Radiohead, junto o baterista Tom Skinner do Sons of Kemet.
Saiu faz um tempinho também um novo do Floating Points, puxando bastante pro house alternativo e nesse álbum parece que o nosso amigo Samuel Shepherd tá bem mais animadinho. O hit é Birth4000, pedrada quase a la Giorgio Moroder.
Um episódio e me parece que já estou DanDaDanizado
NO EPISÓDIO ANTERIOR: Valdir está vivo novamente! Na medida do possível…
s03e03: salpicada de falhas
A essa altura da Dungeon, as leis da natureza já largaram de mão, fumaram um tronco de maconha e estão só descansando depois desses anos todos de serviços prestados.
Brenda ignora explicações. No fundo, ela se importa com tudo isso à sua volta, mas no momento ela só quer seguir em frente. Sobreviver. Ela atravessa uma savana de vegetação rara, um chão árido de um cinza asfáltico. Mas o que lhe incomoda de verdade é o vento quente que vem de cima para baixo, como se o ar estivesse soprando sobre sua cabeça o tempo inteiro. O pó do chão cria uma camada sobre sua cabeça. Brenda prossegue. As árvores que encontra pelo caminho parecem ter se dobrado à força do vento. Seus caules chegam a no máximo um metro de altura e então seus galhos se retorcem virados para a terra, sem forças para crescer em direção ao sol. Talvez exista alguma cuja copa permita que Brenda pelo menos possa se sentar para descansar, ela só não encontrou ainda.
Para ela, tá ruim mas tá bom. Ela tem preferido passar pelos cantos mais estranhamente inóspitos da Dungeon completamente sozinha do que ter que se dobrar às vontades de outrem, como vinha fazendo. O que é uma savana de vento vertical se comparada a anos de aprisionamento psicológico? A dizer “sim” para todas as presepadas do Valdir? Esse cara com quem ela casou sem nem saber direito o porquê. O que é enfrentar os berrolders cegos na Caverna Dos Espelhos usando só uma machadinha e uma corda velha diante de aguentar as pentelhações de Moacir? O que é…
… O que é aquilo? Não é uma árvore. Parece de metal. As cores são vibrantes, não são naturais. Porém desbotadas. Ao se aproximar, Brenda percebe o metal enferrujado e torto. Um cilindro que sai do chão. Na extremidade dele, uma forma côncava, suja de anos de pó. Um tipo de concha que parece lhe oferecer abrigo. O espaço ali embaixo só serve para Brenda e ninguém mais. Parece perfeito pelo menos para dormir um pouco. Ela corre para debaixo da concha e sente um alívio de imediato, mas se atenta para algo ali dentro. Preso na concha, aparentemente ligado ao cilindro de metal: um aparelho de telefone. Os botões de metal, o fone pendurado no gancho. Só por curiosidade, Brenda desengata o fone e o encosta no ouvido. Um tom contínuo, reto, eterno. Está funcionando. O tom reverbera dentro de sua cabeça, bate nas memórias, nas vontades, nas faltas, na solidão, nas saudades, no presente, no futuro.
Brenda engole em seco. Quase que sem controle, a mão de Brenda se desloca até os botões. Tecla oito números. Sem pressa. Só pra ver se tudo funciona. Um tom para cada botão. Sem perceber, a mão só vai.
Três segundos depois do último número, o tom se altera. Está chamando. Um toque de um segundo, seguido por uma pausa de dois. Está realmente chamando. Três toques. Ninguém atende. Brenda sente um calor subindo pela barriga, alcançando seu pescoço. Cinco toques. Brenda não consegue piscar.
— Alô?
Brenda não responde.
— Alô?!
— Oi. — Brenda pigarreia para limpar a voz. — Oi mãe.
🌀
Valdir acha estranho que a sua espada está mais pesada do que antes. Será que tem algo a ver com a gravidade na terceira área da Dungeon? Algum truque mágico de quando Moacir a usou para atacá-lo? Ele parece precisar fazer mais esforço para golpear. Ataca o ar, treinando sozinho diante do casebre que foi oferecido a ele e Dona Isolete. Refaz movimentos que ele não fazia desde quando seu pai lhe ensinou a usar a espada, há muito tempo atrás. Se a mente de Valdir se lembra de apenas parte do treinamento, que dirá seus músculos. Estes trabalham com mais esforço do que Valdir quer admitir.
Após o treino, Valdir se junta a Dona Isolete em volta da fogueira onde ela prepara o almoço, sentando num banquinho. Cansado e gorduroso de suor, bebe de uma garrafa d’água.
— Treino pesado hoje — comenta Valdir.
— Você treinou por três minutos.
— É um… treino focado… coisas de guerreiro experiente. — Valdir não sabe pra onde olhar. — Já me sinto muito melhor.
Dona Isolete ainda tem dificuldade em se acostumar com o novo visual de Valdir. A careca ressecada, a pele fina, repuxada e enrugada, ligeiramente esverdeada. A barba peluda ainda que salpicada de falhas. O trapézio murchou, os braços parecem brigar pra demonstrar alguma musculatura. Alguns espasmos involuntários surgem de vez em quando e Valdir tenta escondê-los.
No mesmo momento em que ela serve os sanduíches de carne seca com queijo colonial e alho-poró, um barulho os envolve. O som estridente e agressivo do escapamento de cinco motocicletas, que circundam Valdir e Dona Isolete. Erguem poeira e o tom de ameaça. Um deles abaixa a bandana que cobria sua boca e levanta o óculos de aviador.
— Olha só! — ele diz. — O casal novo tem sanduíches.
— De onde vocês tiraram esses pães aí? — pergunta outro, um de bigode fino. — Ninguém aqui tem pão. O chefe não deu eles pra vocês.
— Nós não somos um casal — diz Valdir.
— Olha, tecnicamente, se vocês… — diz outro motoqueiro, o dedo levantado.
— Nós ganhamos esses pães — interrompe Dona Isolete. — Faz muito tempo. Vocês… — ela titubeia. —… querem um pedaço?
O motoqueiro de bigode e o da bandana se entreolham. Depois olham para seus companheiros. Eles arrancam da situação uma risada um tanto forçada.
— “Um pedaço”? — diz o do bigode. — Minha senhora, gente nova tem que pagar uma taxa pra gente pra poder morar aqui. No caso de vocês, essa taxa são esses pães de vocês. Todos, no caso.
— Nós não vamos dar todos pães pra vocês — diz Valdir.
— V-vocês querem um sanduíche? Eu ofereço o meu, é de carne seca com queijo e alho-poró…
— Eu sou intolerante a lactose — diz o bigode. — Nós queremos os pães.
Os motoqueiros descem lentamente de suas motos. Valdir percebe que alguns deles começam a colocar as mãos dentro dos bolsos das jaquetas, ou atrás das motos, então se ergue rapidamente. O “rapidamente” no caso significa levar três segundos para levar a cabo o processo. Sua mão já está no cabo da espada.
— A gente pode fazer isso do modo rápido ou do modo divertido — diz o do bigode. — No modo rápido, vocês só entregam os pães e todo mundo se dá bem.
Ele faz uma pausa para erguer uma sobrancelha. Outro motoqueiro ergue o dedinho.
— O que ele chama de “modo divertido” envolve a gente bater em vocês até que…
— Modo divertido! — diz Valdir.
Ele puxa a espada com força, seus dedos não aguentam e a espada voa para longe. Um dos motoqueiros salta na direção de Dona Isolete, pegando o sanduíche e empurrando-a ao mesmo tempo. Ela cai rolando no chão e um segundo depois Valdir reage dando um soco onde o motoqueiro estava. Agora, seu adversário lhe dá uma joelhada na barriga e um outro lhe chuta o ombro. Valdir cai de bunda e tenta saltar para se pôr de pé novamente. Não consegue, parece estar fazendo um passo de breakdance. Mais uma vez no chão, vê um motoqueiro pegando os pães e depois empurrando Dona Isolete com os pés. Ele quer levantar e saltar até ele, mas seu corpo não tem a mesma pressa. No meio do movimento de se erguer, Valdir perde o equilíbrio e cai sobre a fogueira, rolando no chão, estatelado.
Valdir fecha os olhos no esforço de se apoiar nos joelhos para ficar de pé de novo e, quando os abre, já não há mais motoqueiros e nem sanduíches. Dona Isolete está se limpando, com uma calma resignada.
— Bom, — ela diz. — tem um pão escondido que eles não pegaram. Menos mal.
Dona Isolete está sorrindo, mas Valdir percebe que falhou na única coisa em que achava que era bom.
🌀
— Brenda?! Meu Deus minha filha, como tu tá?!
— Tô… tô bem, mãe.
— E o Moacir?
Brenda fecha os olhos e suspira.
— Não tô mais com ele, mãe.
— O quê?! Mas por quê? Um rapaz tão bom que nem ele. Tão educado, tão prestativo.
— É, eu sei.
— O que tu fez? Voltou com o Valdir?!
— Claro que não, mãe, porra… tô sozinha aqui mesmo.
— Sozinha? Dentro da Dungeon?!
— Sim ué.
— Mas isso aí é muito perigoso, Brenda! Pelo amor de Deus.
— Olha, eu tô na terceira área e tô me virando bem sozinha, beleza?
— Terceira área? Ah, então tá quase acabando, né? Tem uma saída nessa área, não tem?
Brenda massageia os olhos.
— Sim… parece que tem.
— É claro que tem. O teu pai, quando entrou aí, saiu na terceira área. Mas ele tava com o grupo dele, não tava sozinha. O teu pai vai ficar puto quando descobrir que tu tá aí sozinha na terceira área…
— É…
— Vai demorar o quê? Um mês pra chegar na saída?
— Eu… não sei, não tenho certeza…
— É sim, acho que foi um mês que o teu pai levou. Ótimo então, vou preparar as coisas pra tua volta. A gente faz um coquetelzinho, chama as tuas amigas… — Brenda lembra que as “amigas” são todas filhas de pessoas conhecidas da mãe cujos nomes ela nem sabe direito. — Ah! E eu já aproveito pra te apresentar o Joelerson, o rapaz que conserta as espadas do teu pai.
— Joelerson, filho do Joeler? — Brenda apoia a cabeça na mão. — Esse cara não tem tipo dezessete anos? Eu lembro dele. De quando ele era moleque. Ficava dando flechada nas bunda dos adultos.
— Aahh mas ele cresceu rápido! Já tá um rapaz forte, responsável. Olhos verdes, cabelo raspado assim.
— Odeio cabelo raspado.
— Ah, aposto que ele deixaria crescer, não tem problema. Vocês podem conversar melhor sobre isso quando tu voltar.
— Tá bom.
— Então tá ótimo. Vou marcar a festa da tua volta, convidar o teu irmão. Teu pai tá trabalhando ainda, só chega à noite, mas ele vai gostar de saber que tu tá voltando. Do jeito dele né.
— Claro… diz que eu mandei um… um…
— Abraço, né? Pode deixar. Um beijo, filha! Se cuida por aí.
— Tá bom, mãe. Pra ti também.
— Vou mandar um beijo teu pro Joelerson também.
— Mãe!
A mãe dá uma risadinha e desliga. O tom intermitente ressoa, solitário. Brenda dá com a nuca na concha e fica ali encostada. Come um pedaço de alguma coisa, descansa apenas o mínimo necessário ali e desaparece dentro da terceira área.
つづく