Não Sei Desenhar #60 - 18/11/22
Vivesse hoje em dia, Fox Mulder seria um seguidor do QAnon? Teria votado no Trump? A Dana sequer deixaria ele cogitar isso tudo?
Eu tive que ver um vídeo do Rick Beato pra descobrir que a Mimi Parker, baterista e vocalista do Low, morreu recentemente de câncer. Sacanagem vocês hein.
Fica aqui a homenagem a uma das vozes mais bonitas do indie rock, da banda que provavelmente melhor representa o slowcore.
free jazz/MPB ou algo assim do ano passado: o álbum do Antônio Neves
Eu queria ter coisas melhores pra falar sobre Wakanda Para Sempre porque o primeiro Pantera é um dos meus preferidos da Marvel, mas não tá sendo lá muito fácil. As coisas que eu gostava ainda tão lá e foram expandidas de alguma forma: a criação do universo de Wakanda (e agora de Talokan), o afrofuturismo (e agora meio que uma tentativa de “latinofuturismo”, ainda que muito envergonhada), etc. Inclusive o Namor e as relações feitas entre as duas nações são legais. E eu gosto do fato de ser um filme com um ritmo mais lento, sem tanta correria. As homenagens ao Chadwick Boseman tão bonitas de fato.
Só que putz. A edição é muito esquisita, meio truncada. Galera até se esforça mas o texto não funciona quando quer fazer piadas, o timing é errado. Tem umas personagens que tão sobrando muito, como a Riri Williams e a Neka, personagem da Michaela Coel infelizmente subaproveitada. E é MUITO escuro, porra. Virou Casa do Dragão isso aqui? Pelo amor de deus, galera. E não tem desculpa estética não, o pessoal de Hollywood tá se perdendo no color grading.
Me ajuda aí Marvel
(sem contar que aqui no cinema local a galera acende as luzes NA HORA dos créditos, mesmo sabendo que tem cena pós-créditos. E bem na hora apareceu alguma funcionária que escancarou a porta da sala e consequentemente a gente viu essa cena com a trilha sonora que tava tocando no filme da SALA AO LADO)
Diário do NaNoWriMo
Há umas três edições vocês COM CERTEZA lembram que eu disse que ia entrar no NaNoWriMo e tentar escrever um livro de 50 mil palavras durante o mês de novembro né.
well guess what
Bom, eu tô atrás mas é bom que isso serve pra eu entender o meu ritmo de escrita, me adaptar ou não e tal. Só que acaba que novembro é sempre um mês sempre cheio de correria no meu trabalho trabalho, então eu acho que vou acabar fazendo um NaNoWri2Mos, continuar escrevendo em outro ritmo por mais outro mês pra terminar o manuscrito. “Ah mas o desafio em novembro” eu quero ver quem vai me obrigar
Inclusive, eu tô escrevendo a newsletter enquanto “deveria” estar escrevendo pro NaNoWriMo. “Ah mas escreve em outro horário” beleza, e quem consegue? Tenho que confessar pra vocês que escrever exige ALGUMA concentração e dedicação e foco, que no meu caso acabam sendo invariavelmente gastas com trabalho e outras questões. Aí chega no final do dia e não é fácil. Vocês tão ligados. E também obrigado Steve Jobs por criar o smartphone e acabar com a capacidade de foco do ser humano em geral
Então a mensagem motivacional de hoje é essa: se você vê que uma deadline não vai dar certo, simplesmente passe ela pra frente.
NO EPISÓDIO ANTERIOR: sempre tem um babaca pra atrapalhar. No caso do episódio anterior, um bando de otakus que acham que tão na máfia japonesa tretam com Valdir e Herivelto e tudo vira uma bagunça. Mas aí eles seguem em frente para um local chamado Pântano de Merda, um nome perfeitamente normal pra qualquer lugar.
Eu não tenho nada a ver com isso
s01e03: salpicada com coliformes fecais
Tem uma “regra” da boa escrita que diz que a pessoa que escreve deve sempre que possível usar todos os sentidos para transmitir a sensação da realidade da cena que está sendo descrita. Não só a visão ou a audição, mas privilegiar também o tato, o paladar e o olfato.
Quando se trata do local em que Valdir e Herivelto se encontram, é justamente o olfato que acaba tomando conta da percepção. É meio inevitável quando o lugar é conhecido como “Pântano de Merda”. Começa como um pântano mais tradicional, o verde envolvendo o olhar de quem chega tanto sobre as águas como nos ciprestes e juncos que ladeiam o rio. Aos poucos o clima meramente úmido vai se transformando, a coloração vai passando para um tom cada vez mais amarronzado, o cheiro de ovo podre vai se tornando cada vez presente e vai se misturando com o cheiro da carne morta de monstros e pessoas. O mangue vai ficando mais espesso, o aroma de merda vai abraçando os recém-chegados como aquela pessoa insuportável que não lhe vê há meses e que berra seu nome na rua como se fosse seu melhor amigo. Se esfrega em você, pergunta como está a família, querendo se entranhar na sua vida. No caso do odor do Pântano, ele consegue. Não é apenas um cheiro: é um estado. A umidade faz as roupas colarem na pele. A lama e todos os seus tons de marrom infestam as plantas e a água convidando vários tipos de insetos para a festa, num zumbido incessante que é o equivalente auditivo ao cheiro de bosta.
Isso já não incomoda Salete mas sempre é motivo de reclamação de quem pega seu barco para atravessar o Pântano. Ela se gaba por ser a única a ter coragem de trabalhar ali e sempre elogia quem escolheu esse caminho, tratando então de fazer com que a viagem seja a melhor possível dentro das possibilidades. Até já tentou colocar flores e perfumes no barco mas nunca fez diferença nenhuma, então compensa com um atendimento simpático (o sorriso no seu rosto parece capaz de engolir a própria cabeça) e com lanchinhos feitos por ela mesma e por sua filha. Valdir come um dos sanduíches que ela tirou de uma caixa térmica e acha até bom, mesmo incapaz de sentir o aroma dele propriamente.
— Carne de tanuki desfiada com queijo de leite de hipogrifo. Uma iguaria que não se acha em qualquer lugar, que nem eu!
Salete gargalha sozinha e dá um empurrão em Herivelto, que desde o começo da viagem tem tapado o nariz com seu capuz e agora tenta vagamente demonstrar simpatia dando um sorriso forçado que mal aparece, debaixo do tecido.
— Tem certeza que não quer um sanduichinho, meu bem?
— Tô sem fome — diz Herivelto, a voz anasalada devido ao nariz tampado.
— Você que tá perdendo.
A recepção de Salete ajuda Valdir a ignorar seu entorno por alguns momentos, mas sua atenção de vez em quando se volta para um dos outros passageiros do barco. Tem outras cinco pessoas na pequena embarcação mas uma delas é particularmente estranha. Um homem que embarcou junto com eles e sentou-se numa posição distante o suficiente para ser notado mas não perto o suficiente para incomodá-lo. Coberto por um sobretudo bege sujo, botas e luvas de couro, um pano vermelho que espertamente lhe tampa o nariz e a boca e um chapéu marrom surrado que deixa seus olhos à sombra. Valdir tem a impressão de que o homem olha de volta às vezes. Mas pode ser mera desconfiança. Seu pai lhe ensinou que tudo ao seu redor pode ser uma ameaça e foi assim que ele cresceu. Uma lição que Valdir levou não só para as caçadas como pro resto da vida.
— Vavá — diz Salete. — Quer mais um?
— Hã? Ah, mais tarde.
Herivelto ri do “Vavá”.
— Depois tem um outro de cogumelo-de-fogo, que a minha filha faz com uma maionese verde que vocês não tem ideia de como fica bom. Você tem filho, Vavá? Tem cara de quem tem filho.
— Não tenho não.
— E não quer ter?
Valdir para e pensa antes de responder.
— Quero… — como se fosse a coisa certa a se falar.
— E o teu amigo? — ela olha para Herivelto.
— Tô fora.
— Imaginei. Então o que…
— Moça — diz Herivelto. — Eu só quero atravessar esse pântano o quanto antes. Não tô afim de ficar conversando sobre a minha vida, ok? Cada vez que eu abro a boca parece que eu como um tipo diferente de mosca.
Salete faz uma careta pra ele.
— Salpicada com coliformes fecais.
— Tá bom então. Com licença.
Ela sai e vai oferecer sanduíches pros outros passageiros.
— Ela é gente boa — diz Valdir.
— Ela pode ser a melhor pessoa do mundo, mas eu não vou conseguir aguentar ela enchendo o nosso saco no meio da porra do Pântano de Merda. Ainda tô puto que você quis vir por aqui.
— À noite já vamos ter atravessado. — Valdir come mais um pedaço do sanduíche. — Dou um jeito de compensar quando a gente chegar na próxima cidade.
— É bom mesmo.
Às vezes pode ser fácil para as pessoas ali dentro esquecerem que elas ainda estão numa dungeon. O tipo de coisa que as fazem lembrar são os inevitáveis ataques de monstros que parecem surgir de forma aleatória, como se alguém jogasse um dado e ficasse decidido que ali surgiria um bicho. A primeira pessoa a notar é Salete. Um borbulhar grave vindo debaixo do barco e seu sorriso se torna uma larga cara de preocupação. Sem uma aparente necessidade de surpreender suas vítimas, sem pressa, quase dando um “oi”, emerge uma cabeça redonda de dois metros de diâmetro à frente do barco. Seus olhos amarelos surgem logo depois contrastando com a pele melequenta, roxa-acizentada. Pontas de tentáculos tateiam a superfície do pântano.
Valdir corre até a proa. Espada em mãos. Aguarda um movimento. O ser o observa sem fazer menção de atacar ou de fazer qualquer movimento brusco que seja.
— É um Polvo da Cris. — Salete controla o volume da própria voz. — Aparecem aqui de vez em quando, devem ter sentido o cheiro de vocês. Não são muito de briga, mas é bom não atiçar.
— “Da Cris”? — estranha Valdir. — Quem é Cris?
— Como assim “quem é Cris”? A Mãe dos Tentáculos. A Guardiã dessa área da Dungeon.
— Quê?!
— “Quê” o quê?! Vocês entraram na Dungeon sem saber das coisas? Vocês são idiotas?
Quando percebe a conversa, Herivelto se aproxima deles, o braço tampando o nariz.
— A gente é idiota? — pergunta Valdir a Herivelto.
— Que papo é esse de Guardiã?
O Polvo vai ciceroneando a embarcação pelo pântano em movimentos suaves e quase imperceptíveis enquanto Salete explica que cada área da Dungeon tem um Guardião ou Guardiã, e que cada um deles protege o portão que leva à área seguinte — um leão-de-chácara avantajado. Cris é portanto a Guardiã da área em que eles estão, uma mulher com tentáculos de polvo que dizem ser avatar de um deus antigo cujo nome as pessoas sequer se lembram.
— Provavelmente porque é um nome muito difícil de pronunciar — explica Salete. — Antigamente os deuses tinham nomes como “Zeus”, “Odin”, hoje em dia parece que…
Enquanto Salete discorre sobre mitologia, Valdir mantém os olhos no Polvo, no aguardo de um movimento surpresa. Vagarosamente, a ponta de um tentáculo emerge a um metro da proa, como se o Polvo propusesse uma aproximação pacífica. O tentáculo se ergue até a altura dos olhos de Valdir, as ventosas brancas como dedos querendo se entrelaçar nos dedos do novo visitante. Os dedos de Valdir, porém, seguem firmes no cabo da espada. Um movimento do Polvo e o tentáculo vira a janta de hoje à noite. Mas Valdir não consegue deixar de notar que, apesar de ser um monstro, o Polvo pode realmente estar tentando dar um “oi” de forma simpática e amigável. É algo com que ele não está acostumado: desde quando monstros podem ser amigos? Isso é realmente possível? Mas eles não servem apenas para serem destruídos e comidos? O que esse Polvo está tentando lhe mostrar? Será alguma magia de dominação mental? Mas e se… BAM
Valdir olha para trás. Vê o homem de sobretudo com uma pistola fumegante na mão, depois olha para o tentáculo. Um buraco cheio de um sangue roxo escuro surgiu nele. O Polvo o retrai.
— Mas que porra é essa?! — é o que Valdir, boquiaberto, consegue exclamar.
— O polvo ia lhe atacar.
— Não ia! Ele só tava…
A frase é interrompida quando a barriga de Valdir é acertada por um dos outros tentáculos do Polvo. Bate com o braço na mureta do barco e acaba caído por ali mesmo. Olha para baixo e vê o Pântano de Merda embaixo dele e, de dentro do Pântano, um novo tentáculo que vem como uma flecha bem no seu rosto. Consegue rolar de volta para dentro do barco enquanto o pistoleiro dispara contra o tentáculo, sendo desta vez capaz de errar todos os tiros — o que passa a impressão de que o primeiro acerto fora sorte de principiante.
— Para de atirar, porra! — grita Valdir.
— Ele só tá assustado — diz Salete.
O pistoleiro segue apontando sua arma para o Polvo. Aquele acesso de pacifismo surpreende o próprio Valdir: se fosse alguns meses atrás, ele sequer teria pensado na possibilidade de um monstro daquele querer fazer amizade com ele. Agora, porém, ele quer acreditar que é um homem melhor, um homem melhor para a Brenda que resgatará em breve. Algo faz “ziuf” ao lado de Valdir e no segundo seguinte ele vê um dardo enfiado na cabeça do Polvo.
— Herivelto, não!
Herivelto, que já estava colocando outro dardo em sua zarabatana, para e olha para Valdir.
— Como assim?!
— Não vê que…
A mente de Valdir se preocupa com coisas incomuns para ele. Isso faz com que não perceba quando um outro tentáculo o agarra pela cintura e o ergue, tirando-o do barco e deixando-o a três metros de distância do Pântano de Merda sem barco para lhe segurar. Sua mente passa pela vontade de decepar o tentáculo com a espada mas freia no meio do caminho da ação. Tenta se desvencilhar do tentáculo mas se dá conta de que, caso se solte, vai cair na merda. O pistoleiro ataca novamente, dessa vez mirando na cabeça do Polvo — que por sua vez demonstra uma velocidade impressionante, desviando de todos os tiros com facilidade. Herivelto atira junto, igualmente incapaz de acertar.
— Parem de atirar no polvo, por favor! — berra Salete.
— Minha senhora — diz Herivelto —, você não tá vendo o que tá acontecendo?
— Mas ele não fez por mal!
O pistoleiro se posiciona na proa, com as duas mãos empunhando sua arma, desta vez investindo concentração no ator de mirar. Só lhe resta uma bala no tambor.
— Calma! — berra Valdir, depois olha para o Polvo. — Tá tudo bem. Não vai acontecer nada.
O Polvo olha de volta. Valdir não consegue entender a expressão no rosto dele — se é que há uma expressão ou mesmo um rosto. Mas ele toca no tentáculo como se tocasse no ombro de um amigo.
A bala sai do cano da pistola mas desta vez não sai sozinha. Ela é acompanhada por uma rajada de fogo que parece impulsioná-la com ainda mais força, deixando um rastro amarelo-alaranjado no trajeto. O tiro atravessa o topo da cabeça do Polvo, gerando uma explosão de sangue na saída. O ser reage fugindo para dentro do pântano e soltando Valdir. Não há nada que impeça Valdir de cair no Pântano de Merda.
*
As pessoas no porto da cidade de Sommarvil estão acostumadas com um certo mau cheiro. O odor de peixe, do suor dos marinheiros ou da cerveja derramada. Àquela altura, o Pântano de Merda já passou e raramente há algum sinal da presença dele no ar.
Raramente.
つづく