Quem diria que fazer quadrinhos é difícil. Nessa entrevista de 2019 o Katsuhiro Otomo fala um pouco sobre as ideias por trás e a produção do mangá de Akira.
Assim: longe de mim glamurizar a hora extra e tudo que os desenhistas de mangá e animadores sofrem trabalhando, mas não deixa de ser impressionante tudo que esse cara fez em Akira. A quantidade de detalhes e a habilidade narrativa, de criar movimento e ação, me deixa muito estupefato.
Dito isso, olha o que ele fala sobre as hachuras que ele fez na bola negra de destruição dessa cena:
I spent an entire evening gradually blackening that sphere with really thin lines. The editor was pretty alarmed when he saw it, what with all the time it took. But—while you can’t see it since it’s a full-view depiction of the blast—there are millions of lives being lost in this panel. If I wanted readers to sense realism in the scene and feel just how significant this event was, that work spent covering it up in detailed black lines was indispensable.
(Gastei uma noite inteira gradualmente escurecendo aquela esfera com linhas muito finas. O editor ficou muito alarmado quando viu, com todo o tempo que levou. Mas - embora você não consiga ver já que é uma representação com a visão inteira da explosão - há milhões de vidas sendo perdidas nesse quadro. Se eu queria que os leitores sentissem realismo na cena e sentir quão significativo esse evento foi, esse trabalho gasto cobrindo ela em linhas pretas detalhadas era indispensável)
Tem muito mais sobre criatividade, produção de arte, etc.
Todo mundo sabe que react não tá com nada. Ninguém nunca fez fama fazendo react. Muito menos react de música da Anitta. Apesar disso, reuni essas duas paixões nacionais no primeiro conteúdo em áudio desta newsletter. No player abaixo você pode conferir ao vivo a minha reação à música nova da Anitta e toda a emoção que veio com ela:
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Nova da Rosalía: tamo dentro.
Uma coletânea de jazz-funk do selo Mainstream Records, que saiu essa semana apesar de ser só de sons antigos que nunca tinham saído.
No The Atlantic: música velha representa 70% do mercado de música americano. É aquela velha história: gente com espírito de velho acha que “antigamente é que era bom”, “hoje em dia não se faz mais música boa”, blá blá blá. O artigo resume bem:
The problem isn’t a lack of good new music. It’s an institutional failure to discover and nurture it.
(O problema não é falta de boa música nova. É uma falha institucional em descobri-la e alimentá-la)
Com isso acho que só nos resta dar adeus à música. Música, obrigado por tudo que você fez, mas pode descansar em paz agora. RIP música.
VEM AÍ MÚSICA 2
Você quer, eu sei. Você sente a coceira na mão e no cérebro. Você PRECISA. Seus olhos te levam ao botão abaixo e tudo que você quer fazer é compartilhar esta newsletter com todas as pessoas que você conhece:
Maria Antônia, Arlete - parte 2
(a parte 1 saiu na edição anterior)
Arlete parecia querer destruir o chão aos seus pés a cada passo que dava na direção da Funerária & Pizzaria do Paulinho. Entrou especificamente no escritório da funerária sem dar aviso nenhum e o próprio Paulinho levou um susto. Olhou para ela com seus olhos azuis, em seguida seu corpo que já fora muito atlético virou na direção dela em sua cadeira de couro. Trajava um terno preto de risca de giz e uma camisa preta. Arlete sempre achou ele um homem muito elegante, mesmo levando em conta o que diziam sobre ele. Atrás de Paulinho havia pendurado um quadro com um retrato do Robert De Niro.
- Arlete, buongiorno. Como estai?
Ela arrastou uma cadeira, riscando o chão com o barulho, e sentou-se. Parou por dois segundos e olhou para Paulinho.
- Paulinho. Eu preciso muito da sua ajuda.
- Ajuda? O que aconteceu?
- Sabe a Maria Antônia? Do mercado?
- Ma claro.
- Bom. Então. Eu gostaria muito que tu usasse as tuas... habilidades pra dar um susto nela.
- Habilidades? Ma do que tu estás falando, Arlete? Quer que eu faça uma pizza pra ela? Que eu meça o caixão dela?
- Eu queria que você tacasse ela dentro de um caixão, isso sim!
- Ma Arlete! Como tu pode falar isso, ela non é tua amiga?
Arlete precisou respirar fundo.
- OK. Eu me deixo levar. Assim, não precisa matar ela. Eu só queria mandar um recado. Eu não aguento mais ela querendo comprar o meu terreno. Eu só queria que ela parasse. Sei lá, quem sabe tu sequestra ela, bota uma arma na cabeça dela e manda ela parar de me atazanar.
- Arlete, per favore. Eu só tenho arma pra me proteger e nada mais.
- Quanto você quer pra fazer isso? – Arlete foi abrindo sua bolsa. Paulinho pôs suas mãos em cima das dela delicadamente.
- Não. Não. Arlete. Ninguém aqui vai ameaçar ninguém, va bene?
- Quanto você quer pra me alugar a sua arma?
- Não, Arlete. Sem armas, OK?
Arlete guardou sua bolsa. Paulinho olhou para ela, pensando em como poderia ajudar aquela mulher.
- Olha, Arlete. Talvez você possa fazer isso de outra maneira.
- Como assim?
Paulinho tamborilou os dedos na mesa.
- Tive uma ideia aqui. Sabe a Oficina & Açougue do Tonhão?
Tonhão estranhou um pouco o pedido de Arlete: vários quilos de carne o mais próximo possível de sua validade. Imaginou que seria um jantar grande pra ontem, e vendeu peças grandes pra ela. Arlete não explicou nada, tacou a carne no carro e, enojada com o cheiro, entregou as carnes para Paulinho. Ele cuidaria de tudo dali por diante. Ela tentou pagar a ele mas ele não aceitou, disse que depois conversariam. Estaria devendo-lhe um favor. Arlete se preocupou por alguns segundos com isso mas depois ignorou o sentimento e começou a pensar nas consequências do plano. Alguns dias e tudo daria certo.
Medeiros estava no Mercado Maravilha escolhendo maçãs quando viu uma mulher fazendo uma careta de nojo quando segurava um pacote de carne. A mulher saiu andando com ânsia de vômito e Medeiros fez o caminho contrário dela. Não precisou chegar muito perto do setor de carnes quando sentiu o cheiro de podridão e viu uns pacotes de carne esverdeados.
As histórias se espalharam com a rapidez que lhes é habitual. Alguém viu as carnes podres no mercado, alguém comprou inadvertidamente, alguém comeu churrasco estragado, alguém fez um ensopado e teve intoxicação alimentar, alguém vomitou até a hóstia da primeira comunhão, alguém teve uma diarreia de fazer Jackson Pollock se sentir inspirado, alguém teve que chamar o padre pra benzer a barriga da filha, alguém estava na UTI do hospital da cidade vizinha porque seu intestino tinha virado do avesso. Arlete fingiu espanto quando Laila veio lhe contar que a irmã de sua vizinha viu um desenho que parecia ser uma cabeça verde com chifres num pedaço de maminha que tinha comprado no Mercado Maravilha. Em sua mente, Arlete sorria. Naquele dia, Maria Antônia faltou à caminhada matinal.
O salão paroquial da igreja tinha um pé-direito alto, o que fazia o som reverberar muito e as conversas ali dentro pareciam muito mais difíceis do que de costume. Havia vinte pessoas ali e todas elas conversavam entre si sobre detalhes da organização da festa de São Drogo. As conversas não pararam nem quando todos ouviram um carro dando uma freada muito brusca logo ao lado do salão, nem quando Maria Antônia entrou esbaforida e se aproximou do grupo que formava um círculo num canto do salão.
- Boa noite, gente. Desculpa, ando muito atribulada com umas coisas do mercado... – ela parou e observou em volta. – Vocês começaram sem mim?
- Boa noite, Maria Antônia. – o padre Saulo aproximou-se dela. – Você atrasou mais de uma hora, não podíamos esperar mais.
- Mas eu... bom, tudo bem.
Maria Antônia foi para se sentar na cadeira que ela achava que costumava ser sua, à frente da mesa com bolachas e café, que lhe conferia certa posição de liderança. Mas Santina sentava ali. Elas se cumprimentaram com a cabeça rapidamente, então Maria Antônia pegou uma cadeira o mais próxima possível desta e se sentou. Do outro lado do círculo malfeito estava Arlete conversando com Laila, Micaela e outras pessoas. Apenas Laila a cumprimentou.
- Pessoal. – o padre Saulo bateu palmas. – Decidido então, não teremos show nacional. – todo mundo concordou. – Teremos show com a minha banda, chamamos o Calculadora e seu teclado, e mais alguma das proximidades.
Santina anotou em seu caderno.
- Agora, sobre o churrasco. – o padre Saulo olhou para Maria Antônia, que sorria satisfeita. – Maria Antônia... infelizmente não teremos como usar a carne do seu mercado dessa vez.
- O quê? – a expressão no rosto pareceu virar do avesso. - Vocês vão quebrar uma tradição de anos por causa de uma besteira? Eu já resolvi tudo, essa questão das carnes foi um lapso!
- Eu sinto muito, mas as pessoas não estão confiantes ainda.
- A minha sobrinha comeu e por pouco eu não precisei chamar o padre Saulo pra exorcizar ela. – disse Santina. – Ela estava falando em línguas!
- Mas... mas...
- O filho da minha empregada comeu a carne crua num dia e no outro surgiu com os olhos vermelhos e agindo que nem um louco, morto de fome, fazendo tudo muito devagar e dando umas risadas aleatórias. – disse Micaela, e fez o sinal da cruz. – Assustador.
Maria Antônia apenas foi capaz de ficar com a boca aberta e os olhos arregalados.
- Por isso, nós vamos conversar com o Tonhão do açougue sobre a carne. – disse o Padre Saulo. – Quem ficará responsável por isso será a Arlete.
Arlete sorriu para o padre e assentiu. Maria Antônia olhou para ela e sentiu sua cabeça ferver. Arlete olhou de volta por um segundo, e Maria Antônia viu um sorriso maldito nela que pareceu durar muito mais.
- Inclusive, Arlete. – continuou o padre, completamente alheio a qualquer situação para além do tema da conversa. – Você poderia aproveitar e cuidar da organização das funções das meninas esse ano, o que acha? Ficar no comando delas.
- Claro! – disse Arlete, disposta.
- Até por que a Maria Antônia parece atribulada demais esse ano... ela pode ajudar em outras coisas, não é?
- Claro. – disse Maria Antônia, incapaz de esconder uma vermelhidão cada vez mais forte em seu rosto.
Em seguida, sem querer sua cadeira fez um barulho grave de arrasto. Maria Antônia se afastou do círculo em alguns centímetros. Seu corpo quis fugir dali na hora, mas ela se segurou. Ela não daria esse gostinho a Arlete, ela não seria vista como louca na frente de todos. Suas mãos seguraram com força a cadeira. Num mundo ideal, naquele momento já estaria em seu carro, berrando de raiva junto com o motor. Ofegava. Olhou em volta e achou que todos olhavam para ela e a julgavam, o que não era necessariamente verdade. Tentava segurar o movimento rápido de seu peito mas tinha dificuldade. Arlete olhou para ela, com a cabeça levemente inclinada pra cima. Maria Antônia viu ela ter cinco metros de altura.
Maria Antônia mal se lembrou do resto da reunião. Sua respiração amainou apenas o suficiente. Ficou até o final mas foi a primeira a sair, alegando coisas a resolver em casa, como se alguém se importasse. Pegou seu carro e partiu pra fora da cidade, berrando quase o caminho todo sem que ninguém pudesse ouvir.
Chegou ao laguinho. Estacionou de qualquer jeito e saiu atirando os pés no chão, então subiu na pedra. Ela nem percebeu o céu encoberto, nem se deu conta de que os únicos barulhos que ouvia ali eram das cigarras e grilos que povoavam as redondezas. O barulho que sobrepôs os dos insetos foi o seu próprio: um grito primal que Maria Antônia resgatou do fundo de seu peito enquanto caía de joelhos na pedra. O grito durou dez segundos e pareceu ecoar na clareira, talvez tenha feito até a água do laguinho se mover. Gritou de novo, o rosto encharcado. Um grito mais curto que terminou quando ela olhou para cima e percebeu algo diferente no céu.
Algo muito grande estava se aproximando do chão. Algo de um verde brilhante que trazia um rastro que parecia uma cauda. Estava caindo. A boca aberta que gritava parou de gritar mas Maria Antônia manteve ela aberta. Era rápido demais. Ela nunca tinha visto uma estrela cadente daquele jeito. E mal teve tempo de ver aquela mesmo.
O objeto acertou o chão no horizonte. Uma explosão de poeira surgiu em volta do local da queda, seguida de um baque inacreditavelmente grave que atravessou o crânio de Maria Antônia. A luz do objeto criou um clarão e ela viu a vaquinha de que gostava caindo na grama. A explosão gerou uma onda de impacto que fez a terra tremer, fazendo as árvores em volta balançarem, algumas delas caírem e, especificamente, a pedra onde ela estava rachar no meio.
Maria Antônia segurou com força na ponta da pedra, que rolou para o lado e a levou junto. A pedra parou, em parte molhada pela água do laguinho, assim como ela. Usou a pedra para se apoiar e ficar de pé. Não sentiu as escoriações e mal percebeu que estava molhada. Não parecia ser capaz de sentir muita coisa. Mas sentia que estava viva. Olhou para a pedra, para o laguinho e para as árvores. Estava ofegante de novo, mas de um jeito diferente. Sentou-se na pedra para descansar. Aos poucos, sua respiração foi voltando ao normal.
Na manhã, Maria Antônia faltou à caminhada, mas no dia seguinte estava lá. Trazia alguns curativos pelo corpo, alguns machucados leves e um sorriso no rosto. Suas amigas estranharam por alguns segundos mas ela desconversou e a caminhada seguiu na mais completa normalidade.
- Falei com o Tonhão ontem e ele aceitou doar uma boa parte da carne. – disse Arlete. – Só que uma parte ele vai ter que vender.
- Ah, eu pago essa parte. – disse Maria Antônia.
Arlete olhou para ela.
- A carne dele é ótima, vale a pena. Vai ficar muito bom o churrasco.
Laila e Santina, atrás de Maria Antônia, se entreolharam.
- E agora que eu não vou mais expandir o mercado, posso usar o dinheiro pra carne. Vai dar tudo certo.
Em sua mente, Arlete gargalhava como uma louca. Seu rosto apenas deu um sorriso ameno e a conversa continuou, sempre tinham assunto. O animal formado pelos corpos das mulheres caminhando todas juntas seguiu pela calçada em seu ritmo de sempre. Inalterado, mecânico.