5 curiosidades sobre mim:
eu não sei ler
quem escreve a newsletter na verdade é a gata Dixie. Segue imagem dela em processo de brainstorm:
eu sou uma criação da sua mente
eu não sei fazer contas
Da série “uniformes mais feios dos animes”: Hurricane Polymar, 1974.
Não tem condição.
Me ajuda aí.
Pra balancear, vamos conhecer Hoku Bucho, o mascote da cidade japonesa de Fukuyama. Ele é uma mistura de vagalume com chefe de escritório de meia idade.
A última de hoje sobre Japão: esse vídeo do Ilha Kaijuu sobre a conexão dos tokusatsu (as produções japonesas tipo Jaspion, Changeman, etc) com o teatro japonês antigo e como os elementos desse teatro são muito mais intrínsecos à estética dessas paradas do que imagina. O que acaba explicando muito do rolê dos tokusatsu, como a ausência do REALISMO como a gente tá acostumado, pessoas mascaradas, fantasias coloridas, poses espalhafatosas e e explosões gigantes. Pra quem curte quadrinho e demais produções japonesas, o Ilha Kaijuu é um puta dum canal. É bom que se diga: os vídeos são invariavelmente longos, são quase como aulas, quase não tem edição, a produção é muito simples e por vezes o tom da fala é monótono. Mas o conteúdo, que no fim das contas é o que importa, é campeão.
Nova do Toro Y Moi? Concordamos. E o clipe é bom também.
Maria Antônia, Arlete - parte 1
Sempre que precisava espairecer, Maria Antônia ia pro laguinho. Seus pais levavam ela e seus irmãos pra lá quando ela era pequena e aquele se tornou o seu lugar secreto e particular. Era uma clareira no meio de umas árvores a uns vinte minutos de Maravilha do Sul. Ao lado do laguinho havia uma pedra muito pesada que subia a uns três metros acima da água e era ali que Maria Antônia gostava de sentar. Dali, podia ver o pôr do sol, do outro lado a cidade, alguns sítios em volta. Em particular, uma vaquinha marrom com um losango nas costas. Maria Antônia achava linda aquela vaca, por algum motivo sempre sozinha próxima à cerca do sítio onde morava, ruminando. Observava a vaquinha. Imaginava que um tapete com o couro dela ia ficar lindo na sua sala de estar.
Maria Antônia sentou-se na ponta da pedra em posição de lótus, fazendo um gemido seco no processo. Sua coluna reclamou quando ela ficou ereta. Fez uma careta mas resistiu à dor, fechou os olhos e inspirou por alguns segundos. Depois deixou o ar sair pela boca. Era assim que tinha aprendido naquele curso caríssimo em Balneário Camboriú. Os pensamentos vinham, inevitavelmente. O estresse com seu mercado, com a vizinha do mercado, com os afazeres da igreja. Chegavam e iam embora como que apenas de passagem por sua mente. Ficou assim por três minutos. Achou que tinha sido por uns vinte, não aguentou mais e levantou. Talvez fosse o suficiente. Ficou de pé reclamando e voltou a olhar a paisagem. Sentia-se razoavelmente renovada. Ou era nisso em que queria acreditar. No pôr do sol rosa-alaranjado ela viu um símbolo de esperança, resiliência e renovação. Um novo dia em breve iria nascer para ela, para o Mercado Maravilha e para a festa de igreja que iria comandar.
- Decidi que vou aumentar o mercado. – disse Maria Antônia, de boca cheia.
- Aumentar? Pra onde? – perguntou seu marido Pedro, franzindo a testa.
- Pro terreno da Arlete.
- Ah não, Maria Antônia. – deixou a mão com os talheres caírem sobre a mesa. – De novo isso? Tu sabe que a Arlete não vai vender nunca esse terreno.
- Ah vai. Ela tem que ceder. Eu vou vencer ela pelo cansaço, tu vai ver só.
- Bom, eu que não vou me meter. Tu que se vire.
- Eu nem quero que tu se meta mesmo. – disse, fazendo um sinal de mão aberta com a mão na direção de Pedro. – Fica com a tua agência de detetive e não me enche o saco, deixa que eu lido com isso. Pedro Júnior, come uma saladinha, meu filho.
O rapaz magro com cabelos muito pretos caindo pelos olhos pegou a bacia de alface e tomate com vinagre e botou uma garfada em seu prato. A mesa de jantar ficava no canto de um cômodo alto, em cujo centro ficavam os sofás em torno da TV de 50 polegadas. As paredes eram de grandes pedras escuras e, pra adornar o local, havia quase uma dezena de estatuetas, imagens católicas, porta-retratos dourados com fotos de Maria Antônia junto de sua família, e uma pinscher que dormia numa caminha vermelha. Apenas sons de talheres e de mastigação ocupavam o espaço quando Maria Antônia falou:
- Se tem uma coisa que eu vou fazer na vida é comprar aquele terreno.
Ninguém falou nada.
Saíram para caminhar com roupas de ginástica coloridas como faziam todo dia de manhã cedo: Maria Antônia, Arlete, Laila e Santina. Naquele dia, Micaela não pôde ir, era sempre a mais irregular do grupo. Caminhavam juntas e no mesmo ritmo, como se fossem um corpo só, um animal colorido e barulhento. Sempre tinham assunto pra conversar, tiravam de qualquer lugar, mas naquele dia estavam preocupadas com a organização da festa de São Drogo que ocorreria dali a alguns meses.
- Pensei num show nacional. – disse Maria Antônia. – Alguém que chame as pessoas pra festa, sabe?
- Mas quem vai pagar? – perguntou Arlete.
- Ah, a gente se ajuda. A prefeitura pode ajudar a pagar. E também não precisa ser ninguém muito famoooso, sabe.
- Mas não é melhor então a prefeitura dar esse dinheiro pra pagar a reforma da igreja? – disse Laila.
- Concordo. – disse Arlete.
- Vocês não sabem como essas coisas funcionam.
- É muito complicado. – disse Santina, com sua voz particularmente aguda.
Continuaram a marcha em silêncio por algum tempo, então Maria Antônia puxou Arlete para trás e deixou as outras caminhando alguns metros à frente.
- Preciso conversar em particular. – disse Maria Antônia, ao que Arlete concordou com a cabeça. – Arlete. Amiga. Eu gostaria muito, mas muito mesmo, de expandir o mercado. E só existe um lugar pra onde eu posso expandir. Tem que ser o teu terreno. Deixa eu comprar ele, amiga, por favor.
Arlete deu uma risada mais alta do que Maria Antônia gostaria.
- Ai Maria Antônia, me desculpa... a gente já conversou sobre isso. Esse terreno é da minha família desde sempre, eu não tenho interesse em vender, amiga.
- Eu pago bem!
Ainda sorrindo, Arlete pôs a mão no rosto pedichão de Maria Antônia.
- Eu sinto muito, Maria Antônia. Mas não vou vender. O terreno é tudo que a gente tem. Nem que eu quisesse, não poderia. O meu pai, coitado, tá muito velho pra lidar com mudança. Não posso, tá?
- Ah, mas um dia eu vou te convencer! – disse Maria Antônia com um sorriso no rosto.
- Ah! Eu duvido muito! Hahaha!
As duas riram juntas e continuaram a caminhar.
- Aquela filha da puta da Maria Antônia veio pedir pra comprar o terreno de novo.
- Mas de novo?!
- De novo. Que inferno essa mulher.
Arlete e seu marido Medeiros almoçavam na cozinha branca de sua casa de alvenaria. A geladeira branca barulhenta e enferrujada dividia espaço com o filtro de barro, com um quadro de Jesus Cristo, com um retrato em preto e branco dos pais de Arlete quando jovens, com um fogão à lenha e com um velho grisalho sentado usando um pijama azul. O velho olhava para o nada. Tinha muito em comum com uma árvore: estava plantado ali havia muito tempo, sua pele era enrugada e craquelenta e qualquer movimento mais brusco faria seus galhos magros quebrarem.
- Pai. – Arlete olhou para o velho. – Quer sobremesa? Tem gelatina.
O velho não falou nada.
- Ele acordou disposto hoje. – falou Medeiros.
Arlete pegou da geladeira uma travessa contendo gelatina verde e deu de comer ao velho com uma colherinha. Um desavisado se surpreenderia ao ver o velho sendo capaz de mastigar. Parecia mover apenas a boca e a garganta. Arlete elogiou o velho e fez um cafuné nele.
- Ninguém vai tirar daqui não, tá? Pode ficar tranquilo. – ela colocou a travessa na mesa e serviu Medeiros de gelatina. – Ninguém vai tocar no teu terreno, pai. Quem ela pensa que é? Ela acha que pode comprar a gente? Esse terreno vale muito mais que qualquer dinheiro.
- Qualquer dinheiro?
- Qualquer dinheiro, Medeiros.
Maria Antônia estacionou seu SUV e foi à sacristia, onde encontrou o padre Saulo afinando sua guitarra. Ela já não achava mais que aquilo era uma excentricidade e achava o jovem padre “um homão”, mas tanto ela quanto os outros fiéis demoraram a se acostumar com ele depois da aposentadoria do padre Valter. Depois de se cumprimentarem, o padre perguntou:
- Onde estão as amigas hoje?
- Ah, eu não avisei que tava vindo. Precisava falar com o senhor em particular.
Ele olhava para ela enquanto virava uma tarraxa da guitarra e ela fez um “uéum” enquanto o padre procurava a afinação correta.
- Já está tudo certo pra reunião da festa. – disse Maria Antônia. – Não tem muito o que ver, vai ser que nem nos outros anos. As meninas ajudam na decoração e no atendimento. O mercado doa a carne do churrasco.
- Tem certeza de que vai doar toda a carne?
- Claro, padre! Eu faço questão. Não vai fazer falta pra gente.
- Que bom então, fico feliz. – virou uma outra tarraxa.
Houve silêncio por algum tempo. Maria Antônia ficou olhando pros lados, procurando por nada, passando o dedo nos móveis.
- O que aconteceu? – perguntou o padre Saulo.
Ela puxou uma cadeira e sentou-se diante do padre.
- Eu preciso de ajuda com uma coisa, padre. Com a Arlete.
O padre tirou a franja da frente dos olhos.
- Eu gostaria muito que o senhor me ajudasse a convencer ela a vender o terreno dela.
- Nossa. – outro “uéuuuummm”. – Mas isso não vai ser fácil hein.
- Eu sei que não! Tu não sabe há quanto tempo eu venho tentando. Mas eu tenho certeza de que se ela ouvir alguém como o senhor falando, ela vai se convencer.
O padre fez um si bemol.
- Por favor, padre, me ajude com isso.
O padre Saulo olhou para a guitarra, depois olhou para Maria Antônia. Estava disposto a negar, mas se lembrou da carne e respirou fundo.
- E o que você quer que eu faça? Chame ela em particular e converse?
- Não! Isso não, ela vai achar que eu que pedir pro senhor falar com ela. Ficaria muito na cara.
- OK. Então...?
- Palavras da salvação... – cantarolou o padre no microfone, ao mesmo tempo fazendo uma nota com sua guitarra.
- Glória a vós, Senhor. – responderam todos os fiéis na igreja.
O padre Saulo puxou o microfone, botou sua guitarra nas costas e desceu do púlpito. A igreja estava com metade de sua lotação máxima para a missa daquele dia.
- Uma coisa que Jesus sempre nos ensinou foi a doação. O doar-se. O quão importante é nos importarmos com o próximo, às vezes mais do que com nós mesmos.
O padre falava olhando um pouco para cada fiel. No primeiro banco, bem à frente do padre, estavam perfiladas Arlete, Laila, Micaela, Santina e Maria Antônia, nessa ordem. Todas olhavam para ele ou para baixo, prestando atenção nas palavras ditas pela voz aveludada do rapaz.
- Todos temos necessidades. E é por isso que devemos nos doar, nos ajudar. Vocês sabem, nessa sexta-feira teremos nossa primeira reunião sobre a festa de São Drogo. Esse ano, vamos arrecadar dinheiro pra reformar algumas coisas da nossa igreja. A igreja não pode se consertar sozinha. Então ela precisa da ajuda de vocês. E cada um ajuda com o que pode. Da mesma maneira, a igreja retribui. Deus retribui.
Maria Antônia, então de olhos fechados e as mãos apoiadas na barriga, deu uma olhada de soslaio para Arlete, que observava o padre atentamente.
- Lembrem-se de Lucas, capítulo seis, versículo trinta e oito: “dêem e será dado a vocês: uma boa medida, calcada, sacudida e transbordante será dada a vocês. Pois a medida que usarem também será usada para medir vocês”.
Fez uma pausa e olhou para a primeira fileira.
- Às vezes, você pode ter algo que outra pessoa precisa. E esse algo que você tem pode ser a felicidade de outra pessoa. Você não vai perder aquilo. Digamos, você pode vender. – o padre falou olhando para a porta da igreja, onde não havia ninguém. – Você fica feliz, pois recebeu um dinheiro justo sobre aquilo, podendo gastar com outra coisa, podendo talvez até comprar outra coisa igual ou melhor que aquela que você já tem, só que mais nova e maior, mais espaçosa, e a outra pessoa fica feliz pois recebeu o que a faria feliz. Todos saem felizes e Deus fica feliz. Isso é o doar-se, essa é a intenção de Jesus.
Arlete apertou um pouco os olhos, encucada.
- Talvez essa coisa que você venda faça não só a pessoa que comprou feliz, mas também outras pessoas, em consequência. Mais coisas poderão ser vendidas a outras pessoas, que também ficarão felizes.
Arlete apertou ainda mais os olhos e franziu o cenho. Virou a cabeça e olhou Maria Antônia, que por sua vez estava concentrada olhando para a imagem de Jesus crucificado no fundo do altar.
- E assim essa grande onda, essa grande rede de doação e felicidade se estenderá quem sabe pra cidade inteira. Tudo porque você fez uma pequena venda aqui. Todos ficarão felizes lá na frente.
O sangue de Arlete subiu e ela olhou para o altar, sem perceber que estava fazendo uma careta de fúria.
- Bom, agora eu vou puxar uma clássica do padre Zezinho. – disse o padre Saulo, empunhando sua guitarra.
Continua…