seguem aqui umas páginas do meu secretíssimo sketchbook/caderno de anotações (um dos muitos que eu tenho e um dos poucos pros quais eu consigo dar um uso)
Mais um álbum foda num ano cheio de álbuns foda: o novo do Sampha, neo-soul com um pezinho no eletrônico e no hip-hop
NO EPISÓDIO ANTERIOR: está tudo muito bem com Herivelto! Nenhum problema ocorre na sua sanha cega por subir degraus no Khepresh. Valdir e Dona Isolete se encontram novamente com Iussuque e o conflito é resolvido de um jeito que nenhum deles esperava - Iussuque agora é o novo segurança da Dona Isolete. Boa sorte pra ela né.
s03e05: apertar a descarga devagarinho
O viaduto parece ir do nada para lugar nenhum. Valdir não lembra do início dele e não consegue ver seu fim. Uma estrutura abandonada, intacta. Os pilares estão presos à terra desértica e pálida, o céu permanece nublado. Não há nada nem ninguém em volta. Apenas Valdir, caminhando sem pressa.
Agora, sozinho. Ele nem sabe quando foi a última vez que esteve assim. Sua memória já não é mais a mesma. Seu corpo menos ainda.
Ele senta na beirada do viaduto para comer, as pernas balançando no ar. O chão, a muitos metros de distância até ele. Houve uma época em que ele cogitaria se jogar. Mas não agora. Valdir sente que precisa aproveitar o que puder. Resta-lhe muito pouco de tudo.
Procura por um pedaço de comida em sua mochila e, no meio da bagunça, se depara com um velho conhecido. Seu caderno. Amassado, a caneta presa a ele. Faz um tempo já. Valdir se dá conta de que não há ninguém em volta. Ninguém que ele precise esperar dormir para poder escrever. O caderno está desatualizado. Tem tanto para colocar ali. Uma memória a resgatar e uma mente a exercitar.
Valdir escreve. De repente, não está mais sozinho.
🌀
Brenda está cansada. Faz mais de uma semana que não encontra ninguém na Dungeon. Uma pessoa sequer. Nada. Poucos se atrevem a chegar até aqui. O cenário faz tudo ficar pior.
O céu é vermelho-sangue. Um vermelho vivo, um tom só de vermelho que mancha o teto até onde a vista alcança. Os óculos protegem a visão de Brenda da vermelhidão agressiva. No chão e diante dela, a neve escura dificulta seus passos. Não é como se fossem cinzas, ou uma neve de água suja. É uma neve sombria. Uma neve reversa. Brenda já nem se importa mais com as loucuras da Dungeon, só espera pelo pior.
E é esperando pelo pior que ela vê, depois de atravessar um ligeiro platô, uma casa. Pequena, parece de madeira, coberta pela neve. Atrás dela, uma cerca tosca de arame farpado. Ao se aproximar, percebe que há alguém na varanda. A mão de Brenda já busca sua espada. Alguns passos adiante, a pessoa na varanda se mexe.
Brenda nota que é um homem grande, debaixo de um cobertor. O homem se remexe, larga o cobertor e corre para dentro de casa. Ele estava numa cadeira de balanço. Brenda desembainha sua espada.
Quando está a menos de vinte metros da casa, o homem volta, trazendo consigo algo diferente. Brenda esperava uma arma. Ele está com uma mochila e uma mala de rodinhas.
– Até que enfim – grita o homem, sorrindo.
Brenda entorta a cabeça sem entender enquanto o homem se aproxima dela, a mão direita estendida.
– Boa tarde! Meu nome é Juceli. Eu sou o Guardião dessa área da Dungeon. Era, né. Ainda bem que você chegou. Olha, o sal fica num pote verde em cima da geladeira, e a privada não funciona direito, tem que apertar a descarga devagarinho senão ela transborda, tá? Eu chamei um encanador uma vez mas ele nunca veio. O atendimento hoje em dia tá cada vez pior, né? Impressionante. Bom, eu vou indo. Ah! A senha da TV é “galofortevingador01”. – Ele chacoalha a mão de Brenda com as suas duas e dá meia volta. – Boa sorte aí! Até.
A boca de Brenda ainda não fechou desde que ele começou a falar. Ela observa a calvície profunda do homem de quase dois metros de altura enquanto readquire sua cognição.
– Peraí! – ela grita. – C-como assim? Que porra é essa?
– O quê?
– Tu é o Guardião da área e tá me deixando passar?
– Minha querida. – Juceli se volta para Brenda novamente. – Eu derrotei o Guardião anterior e virei o Guardião atual. Na época tinham me prometido que o salário era bom e que em algum momento ia vir alguém pra me substituir. Isso já faz três anos e meio. Três anos e meio. – Ele faz um “três” com a mão direita. – Três anos e meio sem falar com ninguém, sem conversar com ninguém, sem ter o mínimo de contato com nada vagamente humano.
Brenda se coloca nessa situação. Parece interessante.
– Eu não aguento mais. Você entende? Eu não fui criado pra isso, eu preciso ver gente, sabe? Eu sou uma pessoa extrovertida. Lá fora eu trabalhava como garçom, a minha linguagem do amor são atos de serviço! Eu tenho uma sobrinha que a essa altura já nem deve lembrar mais do tio dela. Você tem noção disso? Pode ficar aí à vontade como Guardiã, eu vou embora dessa Dungeon.
– O qu… não! Isso não tá certo!
Juceli já estava indo embora de novo quando se vê obrigado a parar de novo.
– Não é assim que funciona! Todo Guardião exige uma luta, algo assim. Um desafio. Você não pode simplesmente ir embora e me deixar no teu lugar, porra. Eu não cheguei até aqui pra tu fazer isso comigo.
– Minha querida. Eu entendo. Mas olha só como você tá. Tá aí cansada, nem consegue segurar a espada direito. Vamos deixar assim mesmo, OK? OK.
– Não!
Brenda aponta a espada para Juceli.
– Nós vamos lutar! – ela grita.
– Ah não…
– Ah sim! Escolhe a tua arma aí.
Juceli levanta a cabeça e fecha os olhos. Suspira e então se vira para Brenda. Tira de sua mochila uma faca de pão e se coloca em posição de luta.
Brenda analisa seu inimigo com o fervor da guerra nos olhos. Dá uma espadada na faca de Juceli. Ela cai e ele se deixa cair junto com ela.
– Oh não! Você me derrotou. Que pena, parece que eu perdi. – Ele se levanta, limpando a neve e juntando a faca. – Parabéns, você é a nova Guardiã. Um abraço!
– Não, peraí!
Dessa vez ele finge que não ouve e só sai correndo, arrastando a mala. Depois não acontece mais nada.
O chalé é pequeno mas aconchegante. Quatro cômodos: sala com cozinha, quarto, banheiro e um quarto da bagunça. Tudo de madeira. Tapetes felpudos deixam o ato de pisar no chão muito mais confortável do que Brenda esperava. Ela tira suas botas e sente os pelos do tapete da entrada. Mexe os dedos dos pés, a maciez lhes dando as boas-vindas. Ela nem lembrava o que era isso.
Não há mais ninguém ali. Uma estante traz algumas dezenas de livros. Há um estoque de comida, ração, a geladeira está cheia. O quarto tem uma cama queen size. O sofá diante da TV permite que ela estique as pernas. Não há mais ninguém ali.
Brenda se permite sorrir.
Ela toma o primeiro banho em semanas. Um banho demorado e quente. Fuçando no armário, descobre um roupão de lá. Envolve seu corpo com ele e se sente abraçada. Ela mal consegue acreditar. Não parece possível. Bota água para esquentar no fogão e vasculha o armário. Encontra um chá de camomila. Parece perfeito.
O chá pronto, Brenda vai até a cadeira de balanço, se cobre e fica olhando o cenário. Pensa que pode muito bem se acostumar com essa situação. Observa a neve caindo sobre o horizonte vermelho e consegue até ver alguma beleza nessa loucura. O chá está gostoso como poucos chás que ela já tomou na vida.
Uma silhueta surge no meio do vapor do chá. Tudo estava indo tão bem. Mas Brenda se vê com curiosidade, empolgada com sua nova missão. Ela aguarda a silhueta se aproximar. Aos poucos começa a tomar forma.
Não parece ninguém que ela conheça, o que é algo comum na Dungeon. Até que ela se dá conta.
É Valdir.
つづく