Esta edição é dedicada à moça que eu vi na academia fazendo cadeira abdutora de braços cruzados. É sobre isso.
Jusant é um joguete de escalar montanha. Não só isso, na verdade ele é quase um jogo de exploração vertical. A mecânica principal é essa mesmo, a escalada. Cada botão de trás do controle funciona pra segurar nas coisas e ir passando pra pedrinha seguinte pra tu conseguir subir, e tu usa ganchos pra ir se prendendo e facilitando a subida. Aos poucos ele vai criando dificuldades então cada trecho se torna quase que um puzzlezinho. A parte de exploração mesmo vem de momentos em que tu entra em cavernas no cenário e lê cartas e vai conhecendo mais sobre as histórias de pessoas que escalaram a montanha também, e mesmo que viveram ali, e aos poucos tu vai sacando qual é a da coisa toda. Tem todo um lance de se conectar com o passado, com as histórias daquela gente e do próprio planeta. A lore é bem interessante e visualmente é criativo e bem feito (acho que é a primeira vez em jogos que eu chego a ter uma ligeira vertigem). Simples, rápido e autoexplicativo e tem no Game Pass.
Da série “chovendo no molhado”: Peter Sellers era foda né? Junto com o Blake Edwards então… aí os dois armaram Um Convidado Bem Trapalhão, nome brasileiro de The Party. Se tu gosta de Roberto Gomes Bolaños, vai atrás do Peter Sellers, tá tudo ali. O timing cômico é impecável e o Edwards filma tudo com extrema precisão. Às vezes com planos mais longos onde a bagunça se forma em volta das ações rolando, às vezes nem tanto, mas tudo deixando a piada e a narrativa se desenrolarem.
Obviamente que tem a questão da black (indian?) face do Sellers aqui, já que ele interpreta um indiano, com sotaque e trejeitos e tal. Mas o filme vai além disso. Começa como uma comédia de erros em que o personagem do Sellers vai Aprontando Altas Confusões (a parte toda do sapato que culmina com a frase “eu tô de dieta mas vou aceitar” é foda) mas em pouco tempo o filme cresce em proporção. Tudo se passa numa festa de um ricaço americano, cheia de convidados ricaços americanos e até algumas pessoas estrangeiras - e aí que vem a reviravolta conceitual da coisa.
O filme é de 1968 e, bom, auge da Guerra Fria né. Daí que o filme vai virando uma tiração de sarro generalizada do american way of life, com a festa sendo invadida por russos (o que dá um susto no anfitrião, mas a esposa explica que eles são só do balé) e por adolescentes vindos de um protesto, em contraponto à festa corretinha e cheia de não-me-toques que o Sellers vinha estragando até então aos poucos, junto de um garçom bêbado.
(talvez esse trailer entregue muito, então cuidado)
Tem no Amazon Prime.
É sábado de madrugada. Já era pra eu estar dormindo. Veja bem, eu TÔ com sono. Só que fuçar no Youtube “só pra dar uma olhadinha” pode te levar por caminhos completamente inesperados. Caminhos como a videografia do Atarashii Gakko!:
isso aqui é bem bom tá?
é pop, tem coreografia mas ao mesmo tempo é uma loucurada muito particular
eu estou fascinado
será que isso tudo é apenas um sonho febril
eu não quero acordar
entrei nesse mundo e não quero mais sair
O lance é que elas são quase que uma paródia do conceito de idols japonesas, aqueles grupos cheios de menininhas bonitinhas e suas fandoms doidas compostas frequentemente por marmanjos virgens. Cada uma delas tem um “papel” dentro do grupo, o que parece ser algo bem específico do gênero (o tipo de coisa que o K-pop adotou também), e como deu pra perceber o grande lance delas é se vestir sempre com o seifuku, o uniforme escolar japonês. Mas isso é porque a proposta geral é falar de juventude e liberdade, um lance que me parece mais otimista, alegre e principalmente sincero como um todo. Eu consigo ver na proposta delas algo como uma voz própria nesse meio, por mais que tudo tenha uma cara superficial e boba - na real que o lance é justamente esse. É como se elas estivessem hackeando a sociedade japonesa por dentro, usando as armas do “inimigo” a seu favor, por baixo de um verniz de mera bobajada. Tem algo a se escarafunchar aí. É um caminho bem interessante a se seguir.
O EP delas de 2021 é provavelmente o mais bem feitinho, mas me parece que a experiência Atarashii Gakko definitiva são os clipes mesmo. E tem bastante coisa pra além deles, como uns vídeos mais aleatórios.
em notas relacionadas, saiu um EPzinho novo do Macross 82-99, grande EXPOENTE do future funk mas que mantém o pé no house agora aparentemente puxando um possível revival do maximal, aquele outro subgênero que foi moda nos rolês indies lá pelos idos de 2006. House pesadão e sujo, obviamente em contraponto ao minimal, coisa feita por gente como Justice, MSTRKRFT, L.A. Riots, etc.
Da minha parte, eu acho até que demorou esse revival. A hora é agora. Vamos juntos.
Depois de, há umas edições atrás, ter entrado numas sobre Chico Buarque, resolvi fuçar pelo trabalho dele como romancista e catei Budapeste. Começa que é bom porque é curto, deve ter umas 150 páginas e com bastante espaço sobrando em volta do texto nas páginas. E também, tem uma coisa que é o fato de ter sido escrito em português e isso torna a leitura mais fluida no geral: frequentemente lendo livros traduzidos me pego achando estranha a construção frasal obviamente adaptada de outra língua, ou mesmo traduzindo os diálogos na minha cabeça e etc etc. Inclusive a própria língua e a escrita são os temas principais do livro, tem todo um lance metalinguístico. É sobre um ghostwriter que vai parar numa convenção de ghostwriters em (adivinha só) Budapeste e ele se apaixona por uma local e acaba indo e vindo nesse rolê Brasil-Hungria, ser ghostwriter e não ser, etc. Num lance que me soa altamente chicoquarqueano, é sobre se apaixonar pela escrita como um cara se apaixona por uma mulher. O muito que se fala sobre esse romance é que ele é “especular”, no sentido de que ele meio que toma a forma de um espelho e é bem isso mesmo. É cheio de duplicidades e coisas que tem reflexos umas nas outras, a própria escrita refletindo o autor, isso tudo aí. Tem muita ida e vinda na história em si: tudo se mistura no texto. Sonhos, devaneios, os próprios escritos do personagem, os diálogos sem indicação. Se eu tivesse lido esse livro uns anos atrás, quando eu era mais alucinado por metalinguagem, teria pirado muito. Pirei, mas não tanto. Ainda é um lance altamente vertiginoso e sagaz e claro que o cara é bom demais.
NO EPISÓDIO ANTERIOR: Valdir chora as pitangas pra um bando de velho jogando bingo num templo perdido e sai de lá com um pão caseiro.
Ah, e ele deu de cara com a Brenda também.
como assim
s02e02: seu umbigo lhe chama muita atenção
Tem algo errado. Brenda não acreditou em seus olhos quando viu. Ficou tão assustada que quando um pássaro grasnou muito alto chamando a atenção dela e de Valdir, ela saltou de volta para a mata fechada e desapareceu. Ela só tinha ido buscar a água do chá do dia seguinte e deu de cara com seu ex. Não pode ser.
Ela foge desnorteada no meio de borrões verdes e marrons, sua mente gritando assustada. O que ele está fazendo aqui? Será que veio atrás de mim? Não é possível. Não pode ser. Ela só queria fugir de tudo que tinha ficado para trás e agora pimba, olha esse filho da puta trazendo todas as memórias de merda consigo. A mata fechada acaba sem que Brenda perceba e então ela está de volta à sua casa, a tenda que mantém com Moacir. Ele recebe a mulher esbaforida com uma expressão assustada.
— Brenda?! O que aconteceu?
Ela demora para responder por que não consegue parar de arfar.
— Moacir. Acho que a gente precisa se mudar.
— Se mudar?! Mas você sempre gostou tanto daqui! Tem algum monstro perigoso nas redondezas?
De certa forma, sim.
— Não. É… eu não me sinto mais bem aqui. Acho que eu quero um lugar mais… inóspito.
— Ainda mais? Quer avançar mais pra dentro da Dungeon?
Brenda faz que sim com a cabeça.
— Você está louca?! É muito perigoso.
Ela apenas olha para Moacir. Louca é a puta que te pariu.
— Eu dou conta — ela diz. — Tu sabe que eu dou conta.
Moacir sabe que ela dá conta, como deu conta de todos os perigos que eles enfrentaram juntos, porque é uma guerreira experiente. Se não fosse por ela, Moacir provavelmente teria perdido até as calças no Mercado da entrada da Dungeon. As poções e misturas alquímicas que ele confecciona não funcionam pra tudo. Ele ajeita seu óculos no rosto magro.
— Tá bom. Mas dessa vez eu decido onde a gente vai sojornar.
Claro que tu decide, como tu decidiu de todas as outras vezes em que a gente “sojornou”. Brenda não diz nada, só parte pra dentro da tenda em busca de juntar seus trapos e desaparecer dali. Ela coloca o cobertor de qualquer jeito dentro da bolsa, joga todos os seus pequenos pertences sem pensar muito, focada apenas em amontoar tudo ali dentro como se a física permitisse que a tenda toda coubesse dentro de uma bolsa esportiva de viagem. Bem que podia permitir, se Moacir fosse um mago um pouco mais habilidoso. Ela tenta não se preocupar com isso e volta a entulhar sua bolsa de bugigangas até que a voz de Moacir do lado de fora a faz parar:
— Ei! Olá, amigos!
Brenda se debate pra fora da tenda e vê uma mulher com um livro gigante debaixo do braço. Ao lado dela, está Valdir.
— Temos visita — diz Moacir, amigavelmente.
🌀
O elmo atrapalha a visão de Herivelto. De tempos em tempos ele precisa reencaixar o capacete metálico em sua cabeça pra não ficar escorregando. O escudo redondo tem o tamanho da sua cabeça. A espada que ele recebeu lembra mais um facão desses de cortar mato. Sua armadura parece ser de um tamanho menor do que deveria, ela aperta demais especialmente na barriga — ele deve ter engordado.
Mas tudo bem. Esse é só o início de uma jornada longa e vitoriosa dentro do Khepresh. Uma jornada solitária e corajosa, que começa com ele escolhendo não tentar atravessar para a área seguinte da Dungeon enfrentando Cris, A Mãe dos Tentáculos, mas tentando uma passagem mais ao norte, aquela que é protegida pelos Goblins de Chocolate Branco. Ele poderia apostar que Valdir foi pela Cris. Como é bobo esse bárbaro.
A muralha tem cinco metros de altura e o portão de madeira envernizada que a corta reluz com o sol da tarde. À medida em que se aproxima, Herivelto percebe que talvez o brilho não seja verniz e sim açúcar cristalizado. Mas ele não consegue prestar muita atenção porque assim que percebem um inimigo, os goblins de pele branco-amarelada que ficam de guarda no portão soam suas trombetas. Do portão sai um punhado de outros goblins saltitantes, seres de meio metro de altura empunhando espadinhas feitas de chocolate 80% cacau, grunhindo sons muito agudos como um bando de pássaros.
A lâmina da espada de Herivelto passeia pelos goblins decepando cabeças achocolatadas - se “passear” significasse “ficar presa em todo lugar que encoste fazendo Herivelto perder tempo tentando puxá-la de volta”. As espadinhas dos goblins o surpreendem, gerando ferimentos muito mais profundos do que o esperado para barras de chocolate meio amargo. Mas Herivelto é hábil e tudo que ele precisa está em suas mãos. Ele não precisa de um bárbaro babaca cagando regra em sua vida.
Ele mata o último Goblin de Chocolate Branco e, mancando, leva a cabeça doce e gordurenta dele como espólio e como a chave que lhe permite passar para a área seguinte da Dungeon Espiral. O sangue do goblin tem gosto de vitória e geleia de frutas vermelhas.
🌀
— Vocês acharem um belo cantinho aqui, hein? Faz quanto tempo que estão aqui?
— Ah! Algumas semanas. Eu gosto muito daqui também, é tudo muito calmo. Como eu já queria tirar um sabático, aqui está sendo ótimo. Muito bom pra praticar o mindfulness.
— Com certeza!
Dona Isolete dá um gole barulhento no chá de camomila, Moacir faz o mesmo. Valdir está parado como pedra, segurando uma xícara de chá e olhando para a tenda, onde ele sabe que Brenda está enclausurada.
— É uma pena que a minha parceira queira se mudar daqui, por que…
A frase de Moacir é interrompida pela queda da xícara de Valdir.
— Valdir! Que coisa feia! — Dona Isolete junta a xícara.
— A sua… parceira… — Valdir sente um enjoo.
— Desculpa, seu Moacir! O meu amigo aqui…
— Ei, tudo bem! Acontece. A Brenda tá um pouco estranha também… deve estar naqueles dias. Sabe como é.
— Eu não tô “naqueles dias”, seu idiota — grita Brenda lá de dentro.
— Brenda?! — Ela nunca tinha gritado com ele antes. — C-calma, querida…
Valdir cai de joelhos diante da porta da tenda.
— Brenda! Vem aqui fora, vamos conversar!
— Eu não tenho nada pra conversar contigo. Sai daqui.
— Peraí, vocês se conhecem? — Moacir se vira para Dona Isolete. — Eles se conhecem?
— Aparentemente…
— Se conhecer? Eu vivi três anos com essa mulher, nós nos casamos! Ainda somos casados, na verdade.
A cabeça de Brenda surge pelo zíper dando um susto em Valdir.
— “Somos casados”?! E cadê a tua aliança?
Ele fica sem resposta. Abaixa a cabeça.
— Diz pra eles que tu perdeu ela numa taverna junto com os teus amigos, numa noite de putaria. Diz pra eles como foi a cerimônia de casamento.
A cabeça de Valdir parece ficar cada vez mais pesada. Ele nunca tinha parado pra olhar a própria barriga antes com tanto afinco.
— Conta pra eles da cerimônia!
— A gente iria fazer a cerimônia — a voz de Valdir parece querer se esconder dentro da boca dele, — à beira da praia. Só que eu gastei todo o dinheiro do aluguel do local comprando uma espada nova…
— E numa festa com os teus amigos.
— … e numa festa com os meus amigos. Aí a cerimônia acabou sendo na Taverna do Buldogue Manco.
Dona Isolete faz uma expressão de dor.
— O sonho de toda mulher! A festa foi tão louca que eles quase mataram o buldogue!
— Mas depois nós consertamos! A taverna mudou de nome pra “Taverna do Buldogue Voador”.
— Sabe quem mais quase morreu nesse dia? Eu! E cada dia que eu vivia contigo, eu morria mais um pouco. A tua vida de bárbaro não combina comigo. Aliás, acho que não combina nem contigo mas tu não é capaz de entender.
— E-eu… — Valdir para e pensa. Não há mais desculpa a se pedir. — Eu mudei, Brenda.
— Não interessa. Não existe mudança que traga a minha vida de volta. Muito menos o nosso relacionamento.
Valdir não diz nada.
Seu umbigo lhe chama muita atenção. Olha o formato dele, como é curioso.
— Eu tava feliz aqui até tu aparecer. — Brenda abaixa o tom da voz. — Não vem estragar isso também.
Ela fecha o zíper e se esconde novamente.
Silêncio. Dona Isolete e Moacir não sabem pra onde olhar.
— Bom — diz Moacir, por fim —, agora que a moça decidiu, eu agradeço a visita mas…
— Você!
Valdir se levanta e aponta sua espada para o pescoço de Moacir com uma velocidade quase imperceptível.
— Você a tirou de mim! Você é o culpado!
— O quê? Não!
Ele se aproxima de um acuado Moacir lentamente mas Dona Isolete se põe na frente da espada.
— Valdir. Pare. Isso não faz o menor sentido. Abaixe essa espada.
— Eu vou te fatiar inteiro seu merda eu vou te jogar pras baleias-leão eu vou comer o teu cérebro com…
— Valdir!
Ele para. Seus olhos parecem querer saltar das órbitas até ele olhar para Dona Isolete de novo. Então ele volta a si.
— Acabou, Valdir.
O corpo de Valdir está retesado, como uma estátua.
Até que seu braço desiste e ele deixa a espada cair no chão.
— Temos que seguir em frente — diz Dona Isolete.
Valdir concorda sem mover um músculo. Vira de costas para o acampamento e sai andando sozinho. Então volta para pegar sua espada. E depois vira de costas para o acampamento e sai andando de novo. Dona Isolete agradece o chá e vai atrás de Valdir.
つづく