O Ted Gioia na newsletter dele falando como a gente pode estar prestes a ver o nascimento de um “novo Romantismo”, no sentido literário mesmo da coisa. Isso porque o Romantismo original, do século XIX, veio muito como um movimento contrário à tecnocracia “opressiva e manipuladora” da época (alguém disse algoritmo?), um racionalismo cego de grandes companhias que tomam conta de tudo. Os artistas do Romantismo então buscam “celebrar o sentimento humano e as conexões emocionais” como “mais confiáveis, mais flexíveis e desejáveis do que a tecnologia, o lucro e o cálculo frio”. Tem algo aí se pans.
Bem legal o Wicker Man original, dos anos 70. Me deixou ainda mais curioso pra ver o remake, aquele com o Nicolas Cage. Pra quem não tá ligado, é um clássico e provavelmente um dos precursores do folk horror, gênero ali da turma do Midsommar e tal. A lógica da história é mais ou menos a mesma, só que aqui o interesse maior me parece ser armar um embate entre crenças: de um lado, um policial britânico totalmente carola, full católico, que Escolheu Esperar™, e do outro uma cidadezinha do interior da Escócia que cultua deuses pagãos, sacrifícios ritualísticos, a música e o sexo. O básico.
Ainda que muito do “terror” da coisa venha pelo choque do culto e da estranheza que ele gera, o personagem do policial não me parece ser tratado como um herói que vai salvar todo mundo ali do paganismo - mas que ele acredita muito nisso, ele acredita. O filme meio que faz questão de mostrar os rituais católicos do policial, pra contrapor isso com os rituais das pessoas da cidade e evidenciar que os rituais católicos são só mais uns rituais também. Só que no final, o que sobra é a soberania da natureza - ou, talvez, do deus do sol, diante da carne humana que vai pro vinagre diuturnamente.
Eu fico imaginando até que O Iluminado pegou algo daqui, é um filme basicamente solar o tempo inteiro. Não tem susto, só o clima de horror e estranheza que vai crescendo à medida em que o filme passa. Aliás, o que ajuda nessa estranheza é a música enquanto tema. O filme é quase um musical na forma como ele dá importância pra elas e compõe o cenário da cidade, e inclusive como o próprio policial chega a apelar pra ela contra a música dos habitantes da cidade numa cena importante aí.
Tem no Mubi. Pode ir na fé.
(entenderam? Pois “fé”. Catolicismo, paganismo. Foi um chiste a partir de
Literatura: que conceito.
Recentemente me peguei lendo dois livros que conversam entre si de jeitos bem curiosos. Um é o Heat 2, do ano passado, a continuação de Fogo Contra Fogo que o próprio Michael Mann escreveu junto da escritora Meg Gardiner (que, fique aí com esse currículo, foi três vezes campeã do Jeopardy). Ele junta as histórias dos personagens do filme original de uma forma bem interessante, indo do passado ao futuro deles, e dá pra ver bem de onde vem o imaginário do Mann em relação aos filmes. Frequentemente parece mesmo o que ele escreveria num roteiro cinematográfico.
Do outro lado tem Nocilla Dream, escrito pelo Agustín Fernández Mallo e lançado em 2006. É o livro que deu origem a uma certa “geração nocilla” na literatura espanhola e é bem pirado. São vários capítulos muito curtos no geral que misturam pequenas histórias com trechos de reportagens e de artigos e algo de uns ensaios até (tem uma bibliografia no final do livro). É quase como se fosse o Chrome aberto com trocentas abas e aí tu vai e lê uma coisa aqui, um artigo ali, lê sobre uma pessoa aqui, lê outro artigo, volta a ler sobre a pessoa.
Os livros se conectam no ponto em que ambos são altamente globalizados e lidam com pessoas no limite. No caso do Heat 2, tá todo mundo nos limites do que é considerado “normal”, civilizado e correto dentro do que estabelece a lei estadunidense. O Hanna é um policial que faz o que quer, o Shiherlis foragido vai morar no Paraguai (onde as leis americanas não se aplicam) e lida com contrabando chinês, o Neil precisa atravessar um limite geográfico pra se tornar quem ele vai ser. O Nocilla Dream lida com uma caralhada de personagens: uma prostituta numa zona que fica no meio do nada, um cara que mora num aeroporto, o próprio Che Guevara, e por aí vai. Todos eles se conectam de formas muito esquisitas mas coerentemente (pós-)modernas. Aqui os limites explodem e se recriam a partir do que sobrou. Faz um sentido no geral, mas é tudo vago ainda assim. A questão da tecnologia capitalista dos EUA permeia a coisa toda em vários níveis, tudo é de alguma forma descartável e raso mas ao mesmo tempo não. Lembra também em algum sentido a forma como o Kurt Vonnegut estrutura suas histórias. É difícil de explicar mas é sagaz demais.
por falar em literatura, o álbum novo do Danny Brown tá bem interessante, rap novo cheio de instrumentais diferentes
também saiu um novo da Tkay Maidza, uma australiana que nasceu no Zimbábue, que mistura hip-hop com trap com pop com neo-soul de maneiras bem criativas e que há miliano tinha soltado essa pérola aqui
por falar em literatura
por falar em literatura…
desculpa, literatura
NA TEMPORADA ANTERIOR: o Valdir entrou na Dungeon Espiral pra resgatar a esposa dele, brigou com um monte de gente (incluindo seu colega de trabalho) e no fim acabou pegando outra mulher. Ah, e a mulher que era pra ser esposa dele tá com outro.
Daqui pra frente, só pra trás
s02e01: uma mente simples não seria capaz de entender
— Oh meu amor!!! Me perdoe, eu te traí com outra pessoa mas não foi por querer! Quem eu quero mesmo é você, Brenda Maria!
— Eu te perdoo, Valdir! Nada está errado, meu amor! Me beije! Hmmm bezo bezo
E então Valdir e Brenda se beijam apaixonadamente, se abraçam, depois se casam e tem um filho chamado Mario Cesar.
Ou pelo menos é o que Valdir rabisca em seu caderno. Na realidade, ele está diante do Templo do Culto ao Deus Esquecido, pronto para chacinar quaisquer vilões que o impeçam de seguir em frente.
Ao seu lado, depois de um pipizinho, ressurge a pessoa com quem ele vai dividir a missão.
— Tudo certinho, Valdir?
— Sim, Dona Isolete — ele responde com um certo enfado na voz.
— Comeu toda a salada?
— Comi, Dona Isolete.
— Então tá bom! Podemos ir.
A senhora de cabelos acaju e óculos de correntinha pega seu livro enorme de capa de couro e o põe debaixo do braço, enquanto o bárbaro desembainha sua espada.
🌀
Iussuque abre um sorriso.
O investimento que seu chefe fez vai valer a pena. Suas novas mãos serão as armas da vingança, as armas da punição. As mãos robóticas se encaixaram perfeitamente no que sobrou de seus antebraços, se ligando a seus nervos de um jeito que ele nem esperava. Mas o que ele mais gostou foi de acionar o segredinho da sua mão direita. Com um pensamento, ele faz sua mão se desencaixar e onde antes haviam dedos agora surge uma haste e um par de lâminas arredondadas. Um machado é um tipo de arma que exige treino, mas Iussuque está acostumado a se esforçar nos treinos.
O que parece não se encaixar, no momento, é a sua roupa. Ele não pode simplesmente usar um disfarce de cowboy de novo. Que tipo de cowboy tem machado como arma? Quem Iussuque seria se fosse um cowboy com um machado? Isso não faz o menor sentido.
Quem Iussuque vai ser agora?
🌀
Se pergutassem hoje para a Dona Isolete como ela conheceu o Valdir, ela provavelmente nem sequer lembraria. Teria que puxar da memória pra lembrar do momento em que, enquanto passeava por um campo pedregoso, encontrara um homem cabeludo sentado no chão, chorando como uma criança perdida da mãe. E pra lembrar do momento em que, quando perguntou se estava tudo bem, ele levara um susto e fingira que estava tudo bem, se levantara rapidamente e tentara voltar à sua pose de guerreiro bárbaro. Mas ela lembra bem de como ele empostou a voz pra falar com ela. E ignora quando ele perguntou o que uma senhora como ela estava fazendo ali perdida na Dungeon Espiral, por que já recebeu muito essa pergunta, mas respondeu com sua tradicional graça que está em uma missão autoincumbida de montar uma enciclopédia da Dungeon Espiral e pra isso está viajando por toda ela anotando tudo de diferente que vê. “A gente não pode ficar parado depois que se aposenta, sabe como é”, ela diz sempre dando uma mexidinha na cabeça com uma risada.
Outra coisa que ela não esquece sobre Valdir foi a forma como ele se propôs a defendê-la dos perigos da Dungeon ali pra frente, enquanto segue em sua missão de encontrar sua amada. Ele disse isso e logo depois deu uma profunda fungada e limpou o nariz com o braço deixando nele um rastro de ranho pós-choro. É por isso que eles entram no Templo do Culto ao Deus Esquecido, esperando pelas mais perigosas armadilhas que com certeza os cultistas esconderam por toda a extensão dos corredores de pedra tomados por mofo e teias de aranha, com suas paredes ostentando desenhos em alto-relevo de monstros que a imaginação humana mal consegue conceber, e de rituais milenares que uma mente simples não seria capaz de entender, de tão herméticos e asquerosos. Valdir empurra uma pedra ao fim de um corredor úmido e eles encontram um bando de velhos jogando bingo ao som de Leandro & Leonardo.
Todos eles estão usando robes roxos com detalhes dourados, e olham para Valdir e Dona Isolete com expressões confusas.
— F6 — anuncia um velho encapuzado que está num palquinho ao lado de dois globos cheios de bolinhas.
Um dos velhos, um homem calvo e magro, levanta-se de sua mesa e coloca seu capuz. Seus olhos são cobertos pelas trevas enquanto ele se aproxima do casal de visitantes.
— O que desejam? — ele diz com uma voz que reverbera dos crânios de Dona Isolete e Valdir. — Não veem que estão atrapalhando nosso ritual?
— Aqui é o Templo do Culto ao Deus Esquecido? — pergunta Dona Isolete, com o livro e uma caneta em mãos.
— O que desejam?
A voz dele faz um calafrio passar pela espinha de Dona Isolete.
— N-nós estamos meio que de passagem, eu estou fazendo uma enciclopédia sobre a Dungeon toda e gostaria de saber se vocês poderiam contribuir com algumas informações sobre vocês…
O velho não fala nada e um silêncio sepulcral parece congelar a sala.
— Que tipo de informações?
— Bom, por exemplo… pra começar, por que o culto de vocês tem esse nome? Quem é o Deus Esquecido?
O velho ergue a cabeça e então uma gargalhada escabrosa ecoa.
— Você seria incapaz de suportar a realidade sobre o Deus Esquecido.
Ele dá um passo na direção de Dona Isolete.
— Apenas os fortes de mente podem lidar com tal conhecimento.
— Bingo! — grita uma senhora lá no fundo. — F6 né? Eu fechei uma linha aqui.
O homem no palquinho vai até ela levando uma bandeja.
— Parabéns, dona Assunta! Aqui seu prêmio, esse belíssimo pão de frutas feito pelo Seu Ivo.
Um berro gutural chama a atenção de todos. É Valdir, que rosna:
— Pão! Pão de novo…
Ele leva as mãos ao rosto e suas pernas enfraquecem. Cai de joelhos. O velho olha para Dona Isolete, sem entender.
— Qual o problema dele…?
— Ele tem passado por umas questões muito…
— Culpa! — grita Valdir. — Eu sou culpado! Traí minha mulher! Eu sou um lixo humano!
— Ei ei ei, calma! Calma, Valdir…
Dona Isolete passa a mão no cabelo de Valdir e encosta a bochecha nele.
— Nós já conversamos sobre isso, está tudo bem! Você vai encontrar com ela e vai deixar tudo às claras, ela vai entender.
Alguém traz um copo d’água para Valdir. Ele bebe, tremendo. As pessoas começam a comentar “tadinho”, “pobre homem”, “macho escroto”, “sei como é”, “qual foi o último número que caiu?”.
— Ela sabe que você traiu ela? — pergunta um velho. — Se não, tá tudo bem! Compra um buquê de rosas e segue em frente.
— Como assim? — diz uma velha sentada ao lado dele. — Foi por isso que você me deu um buquê semana passada?
— Não foi isso que eu disse…
— Esse menino precisa de ajuda psicológica — diz a senhorinha que trouxe a água.
— Não! — grita Valdir. — Tá tudo bem. Eu tô… — ele tenta forçar um sorriso, que imediatamente se transforma em choro.
— O rapaz deve amar mesmo a mulher, hein — comenta o velho que antes conversava com Dona Isolete.
— Ele entrou na Dungeon só pra salvar ela — diz Dona Isolete, fazendo cafuné em Valdir. — Tadinho.
— A Dungeon tem perigos que ninguém consegue prever.
Alguém traz uma cadeira e Valdir se senta, enquanto limpa o rosto e funga. Ele começa a respirar pela boca, tentando voltar a si. Dona Isolete o abana com o livro.
Do nada Valdir se levanta com a espada na mão e berra:
— Vocês, respondam a Dona Isolete! — e todo mundo faz “uou uou”, “calma”, “senta aí”.
— Valdir, tenha calma, querido — diz Dona Isolete.
A mente de Valdir está como uma bola de pinball correndo de um lado pro outro, batendo em paredes enquanto luzes brilham e sons distraem.
— Dona Isolete, bárbaros não choram! E eu sou um bárbaro! Entende?
— Onde está escrito que bárbaros não choram? — pergunta o velho.
— Como assim? Todo mundo sabe disso — a voz de Valdir sai tremida.
— Valdir — diz o homem, e dá um passo de leve em sua direção. Leva sua mão até o peito do bárbaro. — Existe um trecho no Capítulo XXIV do Livro da Sabedoria do Deus Esquecido que diz… — ele faz uma pausa dramática pra poder inventar o que vai dizer a seguir. — “Aquilo que você não gosta, você pode simplesmente destruir com suas mãos como se estivesse esmagando um passarinho”.
Valdir funga, pensativo.
— Ele disse isso?
— Disse.
— Não me admira que esse deus tenha sido esquecido — diz Dona Isolete, o que gera uma sucessão de “ei!”, “epa!”, “como é que é?!”, mas o velho faz todos se acalmarem.
— O que eu quero dizer, Valdir… é que se você não gosta de ser um bárbaro que chora, destrua o pensamento que faz você chorar. Com suas mãos — ele faz o movimento olhando com seus olhos brilhantes para Valdir.
— Olha, isso não me parece a coisa mais correta a se fa…
— Isso — diz Valdir, interrompendo Dona Isolete. — Eu tenho que passar por cima disso e seguir no meu foco de encontrar Brenda.
A bola de pinball cai no meio dos dois bumpers.
— Exato, Valdir! — diz o velho, batendo uma palminha de aprovação. — Siga sua jornada! Não desista. Suma do nosso templo.
Lá do fundo da sala, Valdir percebe uma aproximação lenta. Dona Assunta chega até ele, com um sorriso no rosto vermelho, oferecendo-lhe a bandeja com o pão.
Valdir sente um receio. Engole em seco. Dona Assunta ergue a bandeja na direção dele, amigável. Valdir estende a mão com cuidado, como se estivesse prestes a pegar uma pedra de carvão em chamas. Agarra o pão com força. Dona Assunta faz que sim com a cabeça, incentivando-o.
Ele morde um pedaço do pão. Está morno. Aerado, macio e ligeiramente amanteigado.
Valdir sorri.
O alívio parece escorrer entre todos na sala. É a deixa para uma pausa no bingo e o início do café da tarde.
Valdir se enche de pão de fruta com pudim de leite condensado e café preto enquanto conversa com seus novos amigos sobre suas aventuras na Dungeon, tudo que passou pra chegar até ali como chegou enquanto o velho acaba soltando algumas informações para Dona Isolete. O Deus Esquecido só é Esquecido porque ninguém lembra direito como ele era, o que ele fazia, quais eram os rituais. Alguém teve que inventar isso. Nem o velho sabe como isso tudo começou, ele só vai fazendo. E os outros cultistas entraram na onda. Mas ele pede pra não colocar isso nesses termos na enciclopédia dela. Ela sorri e diz que tudo bem. Valdir sai do Templo com um pão caseiro e uma barra de manteiga artesanal de presente.
*
O sol mal começa a se pôr nos morros quando Valdir e Dona Isolete resolvem parar para dormir. Antes de esperar Dona Isolete dormir para escrever em seu diário, Valdir vai até um riacho próximo encher sua garrafa de água.
Já está um pouco escuro quando Valdir se agacha e começa a lavar a garrafa na água corrente. E observando a água ele vê alguém do outro lado. Uma visão. A pele morena. O cabelo vermelho. Uma miragem? Valdir ergue a cabeça para ter certeza. Não pode ser. Também enchendo uma garrafa com água. Não é possível. Ao mesmo tempo que ele. No mesmo lugar. Os olhares se cruzam.
É Brenda.
つづく
Dungeon voltou forte, hein?