Não Sei Desenhar #61 - 25/11/22
tinha uma resenha sobre Adão Negro aqui em algum lugar mas não tô achando
Em mais um esforço de reportagem, a newsletter Não Sei Desenhar fez o escorpião fugir do bolso no intuito de prover mais uma vez o melhor conteúdo da internet do bairro Santa Bárbara da cidade de Criciúma, Santa Catarina.
Eu investi 19 realidades numa barra de chocolate importado que eu nunca vi na vida e só comprei por que era um preço mais OK do que o Lindt, que tá impraticável, pra fazer o review pra vocês. (E talvez eu tenha sido atraído pelas cores, que nem uma criança)
Me corrijam se eu estiver enganado, mas isso aqui só pode ser um chocolate alemão ou suíço com creme de pistache, né? Escrevi isso sem ler o rótulo todo. De fato: foi fabricado na Alemanha e tem sabor de creme de pistache.
Assim: eu não lembro de já ter comido um creme de pistache na vida. Eu já comi pistache mas não lembro do gosto ($$$). Mas não parece ter muito gosto disso tudo aí não. Tem algum refrescor clássico do pistache sim. Só que no geral me parece mais aquele gosto de cera de chocolate de Gramado. Tem uns 30% dele que é de creme de pistache propriamente. Comer essa barra foi uma experiência arqueológica, na caça de um saborzinho de pistache. Aquela quantidade de recheio que tem ali na embalagem: vocês acreditam se eu disser que NÃO TEM tudo isso no meio da barra? Quando foi que a publicidade começou a mentir pra gente?
Ao fim desta experiência, só me resta sentir saudade do Hersheys sabor Menta ou Laranja, e que custam 5 pila. Chocolate com recheio cremoso tende a ser enjoento. Uma vez a minha namorada comprou um Milka desses cheio de recheio e quase vomitou as próprias tripas por duas semanas seguidas (aproximadamente. Pode ter sido alguns minutos). Se vai botar sabor no chocolate, mistura bonitinho no meio da massa. É mais coeso e todo mundo sai ganhando. Essa é a lição que tiramos do chocolate Aipim sabor pistaziencreme. Nota: 5/10.
um hit velho:
(diretamente do grupo Bota Som do Telegram)
e um hit mais novo (2020):
e um outro hit velho:
RIP Erasmo
Eu sei que todo mundo gosta da Copa. Todo mundo. Todo mundo gosta do Catar e de suas leis completamente igualitárias. Todo mundo gosta da FIFA e seu interesse único e exclusivo na magia do futebol e na forma ilibada com a qual ela trata o esporte. Todo mundo gosta da Globo e de seu jornalismo totalmente idôneo - inclusive no futebol.
Mas dá pra melhorar.
Por isso, fica aqui minha sugestão: melhorar a transmissão dos jogos. Ou se não a transmissão, o debate sobre os jogos. Por exemplo: poderiam chamar uns diretores famosos pra dirigir as imagens dos jogos. Um EUA x Irã dirigido por Quentin Tarantino. Um Show do Intervalo de Catar x Equador dirigido por Jean-Luc Godard (se vivo estivesse). Alemanha x Japão dirigido por Wong-Kar Wai. Ou quem sabe um melhores momentos de Brasil x Sérvia dirigido pelo David Lynch.
Graças a uma tecnologia que só a newsletter Não Sei Desenhar possui, essa última ideia dá pra saber como seria:
NO EPISÓDIO ANTERIOR: aí a galera quer ir pra um lugar chamado “Pântano de Merda” e acha que vai sair tudo às mil maravilhas. Esperavam o quê?
s01e04: nos fios de palha que ele chama de cabelo
Valdir esfrega e esfrega e esfrega e esfrega e esfrega. Cada vez com mais força. Com sabonete, com esponja, toalha. Passa perfume, colônia. Raspa sabão nas roupas. É o terceiro banho do dia.
Não tem jeito. Quando sai à rua, as reações do povo de Sommarvil são no mínimo de caretas enojadas. Crianças correm dele chorando, gritando pelas mães. Sua presença parece formar uma aura invisível de cinco metros de diâmetro onde apenas ele e Herivelto caminham. As pessoas mesmo sem querer abrem espaço para eles nas ruas de paralelepípedo. Os dois caminham pelas frequentes escadarias, conhecendo os vários níveis do local, onde estabelecimentos comerciais colam-se uns nos outros em edificações enormes que dão forma às ruas, conectadas por passarelas de pedra. Só há espaço para andar e comprar: quem quiser parar, tem que ir a uma das tavernas. Foi numa delas que Valdir gastou seu dinheiro em dois banhos. Tentou um terceiro mas o taverneiro os expulsou alegando que ele estava afugentando clientes.
A estratégia agora é comprar roupas novas. Eles só precisam que um lojista as venda. Em uma loja, foram enxotados à base de tiros. A desculpa mais amigável que receberam para não serem atendidos foi:
— Desculpa, mas a gente não atende gente do seu tipo.
Herivelto ficou se perguntando que tipo é esse. Ele então se propõe a ir sozinho comprar as roupas enquanto Valdir espera num canto. Após dez minutos sentado no chão, ele vê um vira-lata magrelo se aproximando. Chama o cão para brincar, pelo menos algum acolhimento ele vai ter finalmente nessa cidade. O bicho sente o cheiro dele e sai correndo. À medida em que vê o cão se distanciando, percebe ao fundo, numa esquina, uma silhueta conhecida - ou quase. Divisa o chapéu e o sobretudo do pistoleiro do dia anterior. Parece estar lhe observando. Valdir pisca e o vulto não está mais lá. A voz de Herivelto lhe rouba a atenção:
— Aí Valdir, trouxe umas roupas pra você experimentar, mas eu não sabia o seu número. — Herivelto traz um amontoado de roupas e uma mulher ao seu lado. — Essa aqui é a Rosemeire, a atendente da loja. Ela veio comigo pra conferir o tamanho e pra ver se tu realmente tava fedendo tanto assim.
— Puta merda — diz Rosemeire.
— Eu falei.
— Tá, OK. Mas isso não é motivo pras pessoas não te atenderem. Vamos ali na loja que é melhor.
Enquanto vai tirando peças de roupas de uma estante que vai até o teto baixo da loja, Rosemeire conta que também é guerreira, que nem Valdir. Atende na loja da tia quando não está em missão, o que tem sido frequente nos últimos tempos. Ela acha que o chefe da guilda local a está escanteando propositalmente. Vai jogando calças e camisetas e jaquetas sobre o balcão, seus braços troncudos dando conta das pilhas de tecido com facilidade.
Valdir escolhe uma calça de sarja, um colete jeans Elvi’s e um par de tênis que o deixam com a mesma silhueta de antes mas com cores diferentes. Fez questão dessas roupas, mesmo sob reclamações de Herivelto — o dinheiro contado que eles trouxeram está acabando antes do esperado. Quem diria que um banho custaria tanto?
Mas pelo menos agora eles podem andar por aí sem afastar as pessoas. Satisfeitos, pagam e despedem-se de Rosemeire. Saem à rua mais confiantes e um menino vomita na frente deles e depois corre reclamando do fedor.
— Simplesmente não é possível — diz Herivelto, voltando à loja. — Eu mal tô sentindo o cheiro. Deve ser as pessoas dessa cidade.
— Talvez seja mesmo. — Rosemeire apoia-se no balcão. — A maioria das pessoas aqui é assim. Ou isso ou você se acostumou com o cheiro.
— Vamos embora de uma vez — diz Valdir. — Já perdemos tempo demais aqui.
— Tá anoitecendo, tem certeza? — pergunta Rosemeire.
— Sim. Mesmo por que não tem nenhuma taverna que nos venderia um quarto.
— Não tem nenhuma taverna que vocês conheçam.
Valdir e Herivelto ficam intrigados. Rosemeire fecha a loja e desce junto com eles cinco níveis de ruas, chegando ao ponto mais baixo da cidade. Há cada vez menos pessoas na rua e cada vez mais movimento nas tavernas à medida que o sol se põe e eles vão descendo. Caminham por uma rua de pedras que ladeia o rio acompanhados por um vento gelado e Herivelto percebe que as poucas pessoas que passam por eles não se afastam. Podem até sentir o cheiro, mas não se importam. Algumas pessoas chegam a cumprimentá-los como se eles morassem ali. Crianças passam por eles, brincando de bola. Depois de alguns minutos caminhando, entram numa ruela apertada e escura e depois viram à direita num corredor ainda mais apertado, descendo um pequeno lance de escadas iluminadas pelo neon azul e rosa intermitente de uma placa que fica acima de uma porta de metal. A placa diz “House of Scorpio”.
Sempre tomando a frente, Rosemeire bate na porta e uma pequena janela se abre no meio dela, revelando olhos amarelos. Os olhos analisam Herivelto e Valdir, depois entendem que eles estão com Rosemeire. A janela se fecha e a porta se abre. São recebidos por um ogro de dois metros e oitenta meio forte/meio gordo de pele verde e camiseta do Motörhead. O ogro mal cabe no corredor escuro, fica sentado numa banqueta. Rosemeire o cumprimenta enquanto eles vão entrando, os três homens trocando olhares desconfiados. Valdir percebe um tremor ritmado no chão. Cada vez maior à medida em que se aproximam da outra porta. Aproxima a própria mão de sua espada, num movimento que ele mesmo mal percebe, instintivo. Ritmo. Repetitivo. Mais alto e mais alto. Rosemeire empurra a porta com o ombro e o tremor se torna música. Valdir arregala os olhos para ver o desenho de um escorpião na parede oposta da taverna, iluminada apenas por feixes de luzes piscantes das mais variadas cores. Ele não sabe, mas seus ouvidos e seu corpo são tomados por “I Feel Love”, da Donna Summer, mas sabe que está sendo disparada por duas caixas de som de dois metros de altura à sua esquerda. Numa espécie de altar, um DJ com uma roupa cromada toca a música em um disco de vinil para umas quase três dezenas de pessoas dançarem na pista ao centro — Valdir estranha que as mesas desta taverna ficam apenas próximas às paredes. São pessoas de todos os tipos, tamanhos e formas e todas elas dançam ao som hipnótico da música, cada uma do seu jeito, com braços e pernas e quadris em movimentos complexos e igualmente hipnóticos em sua variedade. Os três atravessam a pista e ninguém se afasta deles — muito pelo contrário. Valdir percebe olhares em sua direção, avaliando seu corpo e suas feições. Herivelto pensa apenas em como aquele lugar consegue ter energia elétrica, coisa raríssima fora da Dungeon Espiral.
Eles chegam ao outro lado da taverna e, bem abaixo do escorpião da parede, encontram a Rainha. Em sua careca, acima das orelhas pontudas de elfo, onde antes havia cabelo, há agora um arranjo de arabescos cor-de-rosa, que se entrelaçam conceitualmente com a maquiagem em volta de seus olhos e com o vermelho-tomate dos lábios. Também vermelho é o seu vestido de vinil, reflexivo e justíssimo em seu corpo, modelando seu peito reto e estendendo-se até a canela onde começam um par de coturnos roxos. Ela bebe de um copo longo com um canudo e abre um sorriso quando cumprimenta Rosemeire. Conversam mas Valdir e Herivelto só conseguem ouvir a música e observar os detalhes do local, as luzes e as cores e os olhares que às vezes se cruzam. Herivelto percebe um rapaz mirando-o e sorrindo, ao que responde com uma expressão gratuita de raiva. A Rainha os leva ao andar de cima da taverna, onde ficam os quartos e banheiros e onde o som não chega.
— Rapazes, essa é a dona da taverna, Queen Scorpio — diz Rosemeire.
Mais alta até que Valdir devido à plataforma de seus coturnos, Queen Scorpio os cumprimenta sorridente. Em seguida mostra a Valdir o banheiro mais bonito que ele já viu na vida — o que também não é muito difícil. Acostumado a banheiros de taverna mambembes, ou a usar a natureza, nunca tinha se deparado com um cômodo daqueles: paredes de mármore brancas iluminadas apenas por uma vela essencial que exala aroma de capim-limão, toalhas coloridas e todo um leque de sabonetes e (presume ele) poções de limpeza dos mais variados tipos para as mais variadas funções. Lembra-se de Brenda sugerindo a ele coisas como xampus e condicionadores, ainda mais pra um cabelo do tipo dele, sempre comprido e sempre às voltas com sujeira e a luz do sol pós-apocalíptico. Nunca tinha dado atenção às recomendações dela e agora, se estivesse junto dela, a teria ouvido.
— Se precisar de ajuda, é só chamar — sorri Scorpio, dá uma piscadela com seus cílios enormes e fecha a porta do banheiro.
O que se segue é o primeiro banho verdadeiro que Valdir já tomou. Ele analisa os frascos e escolhe com parcimônia o que usar. Passa um sabonete de lavanda pelo corpo e um xampu de rosas nos fios de palha que ele chama de cabelo. Deixa seus dedos enrugarem na água da banheira, e o clima o convida a cochilar no meio do processo. Nunca pensou que pudesse se sentir assim, com essa calma, no meio de sua vida atribulada de guerreiro, nem quando estava com Brenda. Talvez a vida pudesse mesmo ser algo além de matar monstros e ficar com o tesouro.
— Não é todo mundo que eu permito usar o meu banheiro particular — diz Scorpio, na sala ao lado. — Mas o amigo de vocês tava precisando.
— Ah, que bom — diz Herivelto, olhando pra longe. — A gente agradece.
A perna dele não para de se mexer. Da sala de Scorpio há um janelão que permite ver a taverna toda, as movimentações e luzes, e Herivelto não sabe direito para onde olhar. Na verdade, não quer olhar mais para lugar nenhum daquela taverna.
— Quer beber alguma coisa, querido? — oferece Scorpio. — Por conta da casa.
— Não não. Eu tô bem. Obrigado. — Herivelto sorri por um segundo.
Scorpio ergue uma sobrancelha. Após cinquenta minutos (que pareceram dez vezes mais para Herivelto), Valdir sai do banheiro quase que com uma aura renovada. O perfume é completamente diferente e sua pele poderia muito bem estar brilhando, para o estranhamento de Herivelto e satisfação de Rosemeire e Queen Scorpio. Valdir dá um abraço forte de agradecimento nelas e um tapa no ombro de Herivelto.
— Melhor agora, pelo visto?
— Muito.
— Podemos ir embora, então.
— Quê?
— Ir embora dessa taverna.
— Não, nós vamos dormir aqui.
— Dormir? Aqui?!
— É uma taverna, vamos passar a noite e pela manhã continuamos a jornada.
— Você vai me passar a noite aqui no meio de gente desse tipo?
Valdir, Rosemeire e Queen Scorpio olham incrédulos para Herivelto.
— Não tem problema nenhum passarmos a noite aqui. Você devia tomar um banho que nem o meu e se acalmar.
— De jeito nenhum. — Herivelto bate os pés até a porta da sala. — Se você quer ficar aqui, que fique sozinho.
Ao som de “Move Your Body”, do Marshall Jefferson, ele volta à pista mirando apenas a saída. Mas algo chama a atenção dele, no meio de tanta coisa que poderia lhe chamar a atenção. Um chapéu marrom de caubói, parado num canto. Reconhece o pistoleiro que os ajudou no Pântano de Merda, acha estranho que ele esteja ali no mesmo lugar que eles e marcha para ir dormir em uma taverna próxima. Não percebe que, debaixo da aba chapéu do pistoleiro, os olhos de Iussuque perseguem ele e Valdir.
つづく