Não Sei Desenhar ꝷ117 - 22/12/23
impressionante: eu tinha pensado em algo pra escrever aqui mas o calor derreteu o meu cébrelo
Talvez as palavras a seguir sejam polêmicas demais. Talvez seja uma questão muito pessoal, ou muito local. Talvez seja uma ilusão causada pelo privilégio. Talvez seja só comigo. A grande questão é que:
Tá calor pra caralho.
Chegamos essa semana oficialmente no verão e a sensação térmica no forno que é a cidade de Criciúma/SC está batendo os 50 graus e isso nem é um exagero. E a previsão diz que vai piorar! Olha aí que beleza.
O que nos resta fazer diante disso? O que pode uma simples pessoa causar de mudança em escala mínima, que garanta sua sobrevivência em face desse calor apocalíptico? Se hidratar, se refrescar.
Beber água? Foda-se a água.
Pra que água quando se tem o chá gaseificado sabor Chá Verde & Tangerina da Brazô?
Isso aqui é o sabor do verão. Simplesmente. A mistura de chá verde com tangerina traz à mente bolas coloridas caindo no mar, pessoas com pouca roupa, mormaço, água salgada, frescobol, queijo coalho vendido em carrinhos com buzininhas, areia dentro do ouvido. Mas também sombra de árvore e piscina. Não tem hidratação melhor que essa. Se você me der 60 horas eu poderia ser capaz de te provar isso cientificamente.
É uma mistura que não é doce demais - provavelmente graças à gaseificação mágica e ao chá verde - mas o gosto natural da tangerina claramente tá ali com toda a pujança que a gente espera dela. O gás é na medida certa também, não te estufa. Por sinal é quase estranho beber isso aqui e não sentir tanto o gosto de coisa industrializada. Que mundo é esse em que isso ainda pode existir? Um sabor com gosto de coisa normal. Um sabor normal para um verão anormal. Isso aqui com um gelinho? Vissshh. Manda um engradado.
Aliás, o problema é justamente esse: a garrafinha só tem 350ml e não é das coisas mais baratas que tem por aí. Só posso deixar a recomendação: se vir um desses na frente, cate. Não só esse: os caras ainda tem uma versão sabor frutas vermelhas com capim limão que é fortíssimo também. No geral quase falta algo de cítrico apesar da saborância que eu falei, o que me tira um pouco da vontade de beber mais de uma vez. Mas nada que atrapalhe. É o preço que se paga pelo sabor natural. Por mim tudo bem. Nota: 9,5/10.
Gostastes dos álbuns recentes de FBC e Vhoor? Então na mesma onda tem o álbum desse ano do Ogoin & Linguini, dupla ali da cena de Belo Horizonte que nesse álbum passeia por vários gêneros do hip-hop e do funk especialmente dos anos 80 aos 2000, envolto por esse conceito de um programa de TV com direito a propagandas e tudo. É o sabor do verão.
Bem simpático é o álbum da yeule, um pop torto às vezes puxado pra algo mais pesado
Descoberta do nosso amigo Ervilha, Gunesh é uma banda do Uzbequistão dos anos 80 que mistura jazz, rock e música folclórica local. É o sabor do verão.
É curioso notar como pros americanos, ultimamente, o Godzilla parece ter se tornado um brinquedo que eles botam pra fazer uma lutinha contra o King Kong ou uma versão piorada do Ghidorah ou etc. No Japão, entretanto, ele continua sendo o símbolo de coisas muito caras a eles e isso fica muito óbvio no Godzilla Minus One. (É bom que se diga que o filme americano de 2014 meio que não conte tanto pra isso) O filme se passa no final da Segunda Guerra, envolve a dominação estadunidense da época do pós-guerra, e o Godzilla é mais do que nunca o trauma da guerra encarnado. Não é por acaso que o raio que ele solta pela boca detona uma explosão nuclear.
Acho que o Godzilla nunca foi tão assustador ou brutal (ainda que ele não seja mais tão grande quanto os Godzillas dos filmes recentes), de uma forma tão clara. As cenas de destruição são cenas de terror, filmadas frequentemente do ponto de vista dos transeuntes de Tóquio que tentam fugir enquanto o Zilla destrói tudo sem nenhuma explicação. Inclusive a dimensão humana acaba, como sempre, sendo o motor da história e aqui a gente tem um lance sagaz: o protagonista é um desertor, um cara que era pra ser um kamikaze mas que não foi capaz de se matar em nome de seu país. É uma fuga da tradição japonesa por si só, e o drama se desenvolve a partir disso e o arco do boneco é bem bolado nesse sentido. Dá pra pensar também como esse filme pode ser uma prequel do Shin Godzilla não só no nome mas na forma como ele trata o governo japonês: aqui, ele está de mãos atadas graças à intervenção americana e suas tretas com os soviéticos. Quem precisa resolver a treta é a sociedade civil, unida. Tem um lance ufanista pero no mucho aqui, o que me parece ser bem frequente nos principais filmes do nosso monstrão.
Sobre o design novo dele: foda. Aceito action figure dele de presente. As “barbatanas” dele brilham e se desencaixam ligeiramente quando ele vai soltar o raio, pra criar o suspense e a carinha remete muito aos designs de alguns filmes clássicos, um pouco mais arredondado. É um querido 🤏🥰
Isso aqui é o sabor do verão.
E esse vídeo do canal Blunova dá um panorama bem legal do filme, contextualizando ele e dando mais infos interessantes de bastidores
vinil lindo da semana: a trilha sonora de Streets of Rage 2, pelo lendário Yuzo Koshiro junto do Motohiro Kawashima.
Avisando desde já: é muito possível que eu eu tire umas duas semanas de férias da newsletter ali por janeiro ou coisa assim. Tava olhando aqui que esse ano teve só uma semana sem newsletter. Pra evitar uma greve na redação, ano que vem teremos DUAS semanas sem newsletter. Porém sem aumento de salário. O CEO precisa bancar as férias na Europa de alguma forma.
Dito isso, ainda é possível que nessa segunda semana acabe tendo newsletter sim. Vamo vendo.
Aliás: tava olhando aqui que na edição 67, a primeira de 2023, eu fiz uma piada sobre setembro ter “férias coletivas” e ninguém lançar filme ou série… e aí calhou que nessa época tava rolando a greve dos roteiristas (ela só veio a acabar no finzinho de setembro).
Fique com esta informação
NO EPISÓDIO ANTERIOR: Herivelto aprende lições? Brenda se mete em confusões! Valdir não fez nada pra rimar com “ões”. Aliás, ele não fez nada ponto. A culpa não é minha, eu lavo minhas mões.
s02e05: um amontoado de palhaços
Brenda sente como se alguém tivesse lhe dado uma martelada na cabeça e isso a acorda. Ela está numa cama. Quente. Coberta. Bom. Então olha para o lado e vê um cara com o rosto cinza, a maquiagem borrada. As memórias da noite anterior chegam até ela como um caminhão que se aproxima sem freio. Ruim. A cabeça lateja quando o caminhão a atropela. Quem dirige o caminhão é um amontoado de palhaços, cada um uma ressaca diferente. Todos eles usam máscaras com seu rosto.
Por um momento ela sente raiva de si mesma, mas decide que não tem tempo pra isso.
Ela se esgueira pra fora do quarto com suas roupas. Vai até o banheiro da suíte e, em frente ao espelho com moldura dourada, lava o rosto retirando as manchas de maquiagem preta e branca que se misturavam ao redor de sua boca. O espelho reflete a raiva por um instante. Ela sai pelo corredor de pé-direito altíssimo, envolto por teias de aranha, sob o silêncio da manhã.
As escadas largas a levam para o saguão e aos poucos ela começa a se dar conta de que aquela taverna na verdade era a casa do cantor. O salão está imundo. Copos caídos, garrafas quebradas, poças de Nova Schin formam um arquipélago com as pedras do chão. Brenda desce a escadaria da forma mais rápida e silenciosa que consegue.
— Bom dia!
— Puta merda — solta Brenda.
Com a mão no coração sobressaltado, ela vê uma mulher forte e sorridente do lado de dentro do balcão do bar, segurando um rodo.
— Você foi a sortuda da noite, então — diz a mulher. — Ou a azarada.
— Acho que tô mais pra azarada. — Brenda faz uma pausa pra por a mão na testa. — Olha, tu tem alguma coisa pra ressaca aí? Alguma poção? Epocler?
— Desculpa, gata. O máximo que eu vou ter é uma Coca.
— Eu aceito — diz Brenda, após pensar um pouco.
A mulher vai até a geladeira, puxa uma Coca de garrafa de vidro e a abre girando-a no antebraço. Brenda bebe antes que a mulher lhe entregue um copo e o líquido gelado e excessivamente doce parece dar um ligeiro choque em seu corpo. Não chega a ser um chá, mas é o que ela tem agora.
— Eu bem que tentei te oferecer água — diz a mulher —, mas você bebeu vodca e tequila a noite toda.
— Tu me viu aqui? Puta merda.
— Ei! Tá tudo bem, acontece. Já vi coisa muito pior. E olha que eu trabalho aqui faz duas semanas. O ramo de guerreira não tá fácil.
— Ah, tu é guerreira também? Eu também sou. Ou era. Não sei mais. Achei que tava aposentada. Não sei, não consigo pensar em muita coisa agora.
— Relaxa, gata. Às vezes é bom ter um momento desses.
— Um momento de ressaca?!
— Sim! Um momento de fundo do poço, pra depois você poder subir de volta.
Brenda não diz nada, mas ri com a frase. Mal consegue ficar de olhos abertos, os dedos colados na testa. As palavras saem de sua boca quase que por vontade própria:
— Às vezes… às vezes eu acho que vou ficar repetindo os mesmos erros pra sempre. Parece que eu tô presa num troço que eu não tenho como sair, um ciclo de merda atrás de merda.
— Ei ei, calma. Foi só uma noite ruim. Olha só pra mim: eu tava presa num empreguinho mais ou menos, sendo colocada de lado pelo chefe da minha guilda na outra área da Dungeon. Um dia eu encontrei um cara, ele tinha acabado de cair no Pântano de Merda e tava fedendo… bom, tava fedendo como alguém que caiu no Pântano de Merda. Levei ele pra tomar um banho e isso meio me deu um estalo. Até um cara que caiu no Pântano de Merda pode mudar. A gente pode mudar. Agora eu tô aqui, num empreguinho mais ou menos na segunda área da Dungeon.
— Hm.
— Mas o cara que era fedorento? Ele saiu perfumado.
Brenda faz uma careta até que concordando com ela.
— É que, porra… tem coisa que tá enraizada demais na gente, sabe?
— É só arrancar as raízes e plantar em outro lugar.
— Isso nem faz sentido.
— Gata, você tá na Dungeon Espiral. Você sabe que a lógica aqui é diferente. Aproveita isso.
Brenda não diz mais nada. Respira fundo e finaliza a Coca.
— Quanto eu te devo?
— Não, nada, é por minha conta. Depois da noite de ontem? Você já gastou dinheiro demais aqui.
— Obrigada! Como é o teu n…
Uma porta range lá em cima, ao fundo.
— Brenda?! — berra o cantor.
Ela arregala os olhos e sai correndo.
🌀
O portão de metal de cinco metros de altura geme como se não suportasse mais trabalhar. Quando ele para de reclamar, o vagão enferrujado em formato de jipe com doze lugares segue em frente pelo trilho enferrujado. No banco da frente, um guia turístico enferrujado leva um megafone à boca.
— Agora nós estamos entrando na ala dos Titanossauros. Finalmente. Essa é a parte mais empolgante do nosso passeio. Todos os kaijus aqui tem pelo menos oitenta metros de altura. Isso é mais do que… — O guia esquece essa parte do texto. — Mais do que… setenta metros de altura.
Três fileiras de bancos atrás do guia, Dona Isolete procura o kaiju, sem sucesso. Seus olhos acabam recaindo sobre Valdir, que é um corpo sem alma vazando pelo banco, a cabeça na metade do encosto.
— Valdir! Você disse que estava empolgado pra vir aqui. Que sempre quis ver um kaiju. Olha, eles estão ali! Em algum lugar.
— À nossa esquerda temos Harudah, a Fúria Em Forma de Monstro. Ele destruiu sete cidades e matou mais de trinta mil pessoas. É ou não é muito empolgante? — Ele só queria uma grana rápida pra comprar uma cabana e viver sozinho e não ter que lidar com gente. O salário de guia incluía plano de saúde.
Dona Isolete cutuca Valdir, que mexe apenas ligeiramente a cabeça para olhá-la.
Ele não quer. Ele só não quer. Simplesmente.
— Graças à construção do Sr. Drummond, hoje em dia Harudah apenas vive tranquilamente aqui no nosso parque, sem oferecer perigo nenhum. O Sr. Drummond não poupou despesas. É ou não é fascinante? — Hoje o almoço no refeitório tem frango à milanesa.
Valdir cruza os braços. Ele nem sabe o que está fazendo ali. Só está. Nem lembra como chegou. Poderia estar em qualquer outro lugar. Tanto faz. Poderia estar morto também. Tanto faz. Ele só segue em frente porque tem alguém puxando. Tenta se lembrar como chegou ali. Tudo que vê é um rastro de violência, contra os outros e, em última análise, contra si mesmo. Onde isso tudo começou? Que decisões ele tomou que lhe fizeram chegar a esse momento, desse jeito? Quantas pessoas ele precisou matar pra chegar até aqui? Pelo visto, isso tudo só vai acabar se ele mesmo se matar. O cabo da espada pende da mochila. A espada, a culpada. Valdir anota mentalmente para escrever essa rima no caderno mais tarde. Se houver um “mais tarde”.
— À nossa direita nós temos o kaiju preferido do Sr. Drummond… o… — Ele confere no panfleto o nome desse filho da puta. — … Space Terrorus. Ele é conhecido pelo seu raio de energia, que pode…
… Destruir a cerca de metal que o prende e atingir o trilho trinta metros à frente deles, abrindo uma cratera. Todos no vagão levam um susto, até Valdir. Um som tenebroso faz o chão tremer, vindo do lado de dentro da cerca. Um urro desesperado e profundo, raivoso e animalesco. Uma pata destrói árvores ao lado da cerca. Escamas rugosas, quase como de pedra, garras antigas. Os três acompanham o que vem após a pata: pernas grossas de um bípede, um tórax com um olho na vertical, um par de braços vagamente humanoides e uma cabeça que fica arredondada devido às duas asas de morcego pendendo em cada têmpora. Space Terrorus abre sua bocarra de dezenas e dezenas de dentes e grita novamente.
Valdir sente um raio lhe atravessar. Fica de pé no vagão. O guia sai correndo voltando para o que restou do trilho e puxa um walkie-talkie, chamando a segurança. Bem no seu turno. Valdir puxa Dona Isolete pelo braço e ambos disparam à frente do segurança. Space Terrorus dá um passo. Lento, como se imagina que seja um passo de um monstro daquele tamanho. Sua pata esmaga o portão pelo qual eles acabaram de passar. O vagão continua seu trajeto devagar, até cair na cratera recém-criada e descer sem vontade por ela, se deixando levar pela gravidade, sem pressa. Perde o equilíbrio e cai para o lado, sem energia. Aí explode.
O guia deixa cair o walkie-talkie diante da visão gigantesca à sua frente. Space Terrorus parece perceber os três, apesar de seu tamanho. O olho vertical no peito do monstro pisca, como se estivesse acordando de um sono milenar. O globo ocular começa a brilhar, com uma energia amarelada. O guia percebe que essa mesma energia começa a circundar seu próprio corpo.
Ele começa a levitar. A energia puxa-o para cima, como se ele não pesasse nada. O guia sobe até ficar na altura do rosto do monstro, cara a cara com os dentes e o par de olhos vazios e cruéis e alienígenas. Isso aqui na Justiça do Trabalho dá uma cadeiada.
Valdir acelera, espada na mão. À frente de Dona Isolete, ele corre na direção da pata de Space Terrorus onde antes havia o portão. Ele não quer lutar, mas pelo menos algum machucado consegue fazer: quando passa correndo pela pata, faz um corte horizontal na pata imaginando que o monstro pelo menos se desequilibre e isso facilite a fuga.
— Dona Isolete, vamos seguir pelo…
Ele olha para trás e não a vê.
Olha para cima. Dona Isolete está envolta pela energia amarelada, subindo no ar. Space Terrorus urra de dor. Valdir salta nas pernas de Dona Isolete, numa tentativa vazia de puxá-la para o chão. A energia os leva até a altura do rosto do monstro em dois segundos. Valdir coloca todas as suas forças em seus braços, agarrando as pernas de Dona Isolete. Os dois olham para o monstro, e ele olha de volta. O abismo diante deles, cheio de dentes sujos de sangue humano.
Particularmente vingativo, Space Terrorus grita para eles e o olho vertical puxa Valdir para dentro de sua boca, fechando-a logo depois. Dona Isolete grita o nome de Valdir, desesperada.
Os dentes parecem trabalhar ali dentro. O kaiju mastiga.
Mas para. Como se tivesse uma revelação. Seu corpo estanca. Dona Isolete não consegue tirar os olhos da boca do monstro.
A energia em volta dela começa a se esvair e ela vai escorregando lentamente até o chão. Ela não tira os olhos da boca do monstro. Ele ergue a cabeça. E berra.
De dentro da boca dele, ela vê uma espada saindo. Depois da espada, um Valdir, atravessando o rosto de Space Terrorus. O monstro pende para o lado, devagar, suas pernas perdendo a força. Dona Isolete força a visão para ver Valdir fatiando o rosto do monstro no meio da queda. Até que a cabeça de Space Terrorus acerta o chão, e Valdir faz sua espada desabar sobre a testa monstruosa sob seus pés. Dona Isolete corre até Valdir e o encontra.
Completamente vermelho e grudento e brilhante de sangue de monstro, dos pés à cabeça. Triunfante, esbaforido.
— Dona Isolete, é isso!
Valdir sorri.
— Eu preciso acabar com a violência na minha vida!
Ele abre os braços, demonstrando sua ideia.
Um pedaço do cérebro do monstro cai de sua espada.
つづく