Como saber que tu tá vendo um filme do Brian dePalma: a primeira cena tem uma pessoa assistindo algo num monitor. E não só isso, o que se passa nesse monitor é uma encenação, algo criado com o intuito de enganar alguém. Tanto a câmera fixa distante da ação oferecendo um plano aberto e o fato de estar em preto e branco - é um monitor de câmera de vigilância dos anos 90 - parecem remeter a filmes mudos, do início da história da produção cinematográfica. Essa porra toda é a a cena inicial do primeiro Missão: Impossível, aquele de 96, que eu me vejo na obrigação de averiguar já que enquanto escrevo isso a gente tá na iminência do lançamento do sétimo filme da franquia. Isso porque aparentemente os caras vão desenterrar personagens e situações do primeiro filme - como mais ou menos já vinha sendo feito nos filmes anteriores dirigidos pelo Cristopher McQuarrie. O Fallout tinha a filha da Max, traficante de armas do primeiro filme, e no início desse também rola uma encenação pra enganar alguém pra conseguir informação - além de reverberar a preocupação do personagem do Tom Cruise com quem tá em volta dele e tal.
Mas é claro: o que aquele filme tinha que esses não tem é o Brian DePalma. São todos os planos holandeses e outras posições de câmera inesperadas.
CORTA PARA
Missão Impossível: Acerto de Contas Parte 1 realmente resgatou do primeiro filme os planos holandeses e uma certa sensação de desnorteio e paranoia. (POSSÍVEIS SPOILEIRS A PARTIR DAQUI) Não só isso: ele traz de maneira mais textual algo que sempre foi inerente a todos os filmes, que é a questão do que é a verdade e o que é mentira, já que agora lida com uma inteligência artificial que se infiltra nas comunicações dos personagens e altera imagens e sons como quer. Curiosamente, e talvez exatamente por conta disso, esse filme não tem nenhuma daquelas cenas cenas em que a gente acha que tá tudo perdido pra no fim descobrir que era mais um jogo de cena do Ethan Hunt, em que ele tira a máscara pra cagar na cabeça do bandido em questão. É como se a gente visse tudo pela visão dele e da equipe, só dessa vez.
Por sinal, o roteiro também vai mais a fundo na história pregressa do Ethan Hunt - agora parece que o lance é mais pessoal do que nunca, já que o vilão vem do passado dele pré-IMF e a tendência é ficar ainda mais pessoal na Parte 2 por conta de acontecimentos. Isso de certa forma também traz pro nível do texto algo que tinha ficado ligeiramente mais subliminar nos outros filmes, que é essa tendência meio suicida do Hunt e do quanto ele é atormentado pelas mortes de pessoas próximas a ele. A cena que apresenta o Tom Cruise nesse filme parece meio preconizar o futuro dele, como um possível chefe da IMF ou se aposentando, enquanto se esconde por aí, depois de recrutar novos agentes. Nesse filme tem dois recrutas e mais um que dá a entender que vai entrar pro time no próximo filme e uma dessas recrutas é a Hayley Atwell que… bom, que presença luminosa.
As cenas de ação, o que dizer né? Foda. Direção precisa, tudo certinho. Uma pena foi o trailer entregar a cena do Cruise saltando de moto de uma montanha, o que tira um pouco do impacto, mas aí fazer o quê né? É a máquina hollywoodiana. E por falar em máquina hollywoodiana, ainda não decidi se me incomodou ou não o quanto os diálogos precisam reexplicar certas situações do filme - mas me deu a sensação de que era mais pra deixar todo mundo na mesma página, pronto pra o que viria a seguir sem ficar se preocupando com a trama. Então por mim tudo bem.
Os caras entregaram de novo, não tem jeito.
vinis lindos da semana: Snõõper - Super Snõõper
essa versão do Frigid Stars, do Codeine (que inclusive é um álbum foda que eu já elogiei aqui mas nunca é demais lembrar: clássico do slowcore dos anos 90 e provável detentor do primeiro lugar do pódio de Álbuns Mais Tristes da História)
O Noclip é um canal de Youtube que faz uns documentários muito bem produzidos sobre produções de vários videogames, e essa semana saiu um com várias entrevistas com o pessoal do Immortality (o famigerado Melhor Jogo do ano passado). Vale a pena checar, especialmente a parte em que o diretor, o Sam Barlow, fala sobre as influências específicas do jogo e coisas do tipo. Obviamente tem spoilers
Um Dos Clubes
Mudar-se de uma cidade grande pra uma de doze mil habitantes pode ser um choque e uma dificuldade muito grande. Não foi o nosso caso, graças ao Seu Timóteo e sua mulher Salete, os presidentes do Clube dos Sete.
A nossa rua parece sempre ter um perfume de comida. Depende do horário: cheiro de café quentinho, cheiro de carne assada, de bolo recém-saído do forno. Depois de um dia da nossa chegada, eu e minha mulher descobrimos que é principalmente por causa da dona Salete, a cozinheira de mão cheia que mora na casa em frente à nossa. E foi no domingo seguinte que descobrimos quem era Seu Timóteo, quando ele apareceu na nossa porta segurando uma janela de costela bovina de meio metro de largura como se fosse um bebê. Tinha um biquinho em cima.
– Vocês estão convidados para serem padrinhos dessa criança – disse, o sorriso brilhando embaixo do bigodaço. – E não aceitamos “não” como resposta!
Convidando assim, não teve jeito. No churrasco, conhecemos mais alguns dos nossos vizinhos e dos amigos do Seu Timóteo e da Salete, que em pouco tempo se tornariam amigos nossos também. Tinha o Carlos, dono de um Uno 94 que ele tratava melhor do que o resto da família. A dona Valéria, uma viúva aposentada que passava metade do dia na academia e a outra metade no Tinder (isso nos dias úteis. Nos finais de semana, nunca parava em casa). O senhor e a senhora Medeiros, que tinham uma coleção de papagaios que viviam conversando entre si – era como se eles morassem no meio de um podcast que nunca acaba. O Adamastor, o único taxista da cidade e a pessoa mais quieta do churrasco.
– Então você veio pra trabalhar naquela empresa ali perto da rua da barbearia do Manoel? – perguntou o Seu Timóteo lá pelas tantas, depois de me oferecer um pedaço de picanha.
– Isso! É uma empresa de tecnologia. Me contrataram faz pouco tempo e como eu tô interessado em crescer ali dentro, aceitei o desafio de vir pra cá pra morar e trabalhar.
– Rapaz, você vai ver que não tem desafio nenhum morar aqui. Essa turma aqui, todo mundo vai ajudar vocês no que quiserem.
– Principalmente – disse o Carlos – se o que vocês quiserem envolva cerveja e churrasco.
– E truco – disse o Adamastor.
– Ah! Eu quero bastante coisa! – eu disse, e dei uma risada. – Só que eu não sei jogar truco.
Algo aconteceu. Tudo parou.
Todos me olharam como se eu tivesse acabado de cometer um crime. Nunca sofri um julgamento moral tão pernicioso e repentino.
– Isso precisa ser corrigido – disse o seu Medeiros.
– Vou pegar um baralho agora, peraí. – O Carlos já tinha levantado e estava na metade do caminho até o Uno, onde aparentemente ele guardava um baralho espanhol para emergências no porta-luvas.
E foi assim que eu aprendi a jogar truco e fiz meus primeiros amigos na nova cidade.
* * *
O meu cargo na empresa exigia um pouco mais de mim, só que a cidade era tão pequena que no fim parecia ser mais fácil trabalhar. Um cargo mais alto parecia vir em pouco tempo. A Salete prometeu um emprego de professora pra minha mulher em sua creche e em pouco tempo estávamos estabelecidos na cidade. Tudo estava se encaixando e não havia mais dúvidas em relação à nossa estada. Não demorou quatro meses pra que, numa visita do Seu Timóteo, eu lhe contasse uma novidade que o fez abrir um sorriso gigante até mesmo pra ele.
– Grávida?! Mas que maravilha – ele disse e me abraçou atrapalhadamente por cima da mesa. – Temos que comemorar isso.
– Sim! Nós vamos marcar um churrasquinho lá em casa pra...
– Não não – ele me interrompeu. – Vamos comemorar como se deve uma notícia dessas, do jeito que a notícia merece – O Seu Timóteo falava pontuando tudo com as mãos, com a eloquência e a voz grave do político que ele diz que nunca quis ser. – Eu vou conversar com o pessoal. Vamos fazer isso direito. Amanhã a gente conversa direitinho sobre isso.
Eu concordei enquanto ele me dava tapinhas no braço, o sorriso brilhando junto com seus olhos.
A festa de comemoração de gravidez era na verdade um convite oficial para mim e minha esposa fazermos parte do Clube dos Sete, um ajuntamento de casais locais que se reuniam mensalmente num sítio para organizar eventos beneficentes e ajudar os necessitados da cidade como um todo. Logicamente aceitamos o convite. Como não aceitar? Depois de tudo que eles fizeram por nós. A nossa vontade era de retribuir à comunidade de alguma forma.
Começamos a participar ativamente de todas as ações que o Clube dos Sete fazia inicialmente em um período de teste. Exigia tempo e esforço mas no fim tudo parecia valer a pena. Estávamos ajudando pessoas e nos divertindo no processo – as reuniões do Clube eram sempre regadas a churrasco, bebida, cantoria e truco. O período de teste acabou depois do sexto mês de gravidez da minha esposa, numa reunião especial do Clube em uma quarta-feira à noite.
Resolvidas as questões principais da pauta da reunião, comemos e bebemos como sempre. Em meio às risadas, ouvimos um galope vindo da rua.
– Chegou a hora – alguém disse.
Os outros seis casais se dirigiram pra fora e eu e minha esposa apenas acompanhamos. Na frente da entrada do sítio estava Adamastor, de cocheiro de uma carruagem de madeira antiquíssima porém muito bem feita e bem cuidada. Ele dominava perfeitamente um par de cavalos de pelagem marrom reluzente, fortes e suntuosos. Seu Timóteo então puxou uma escada e nos ajudou a subir na carruagem. Eu e minha esposa (e nosso filho na barriga dela) dividimos o passeio de carruagem com Seu Timóteo e Salete e o casal Medeiros.
Conversávamos tranquilamente enquanto Adamastor nos levava por um estreito caminho de terra batida, iluminados a princípio por postes. Acho que foi após quinze minutos de cavalgada que o sinal de celular parou de funcionar e os postes elétricos sumiram para dar lugar a tochas, que indicavam um caminho específico. Adamastor as seguiu, virando à direita e saindo da estrada de chão, se embrenhando numa trilha mais fechada no meio do que parecia uma plantação de eucaliptos, ainda que bagunçada e intocada por mãos humanas. Uma mão da minha esposa apertava cada vez mais a minha e a outra pairava sempre sobre sua barriga. Coincidência ou não, a conversa parou. Então só ouvíamos o galope dos cavalos, o som de um ou outro bicho noturno, o fogo crepitando nas tochas. Passamos a ouvir um som grave, profundo e confuso. O som ficava cada vez mais forte à medida em que avançávamos pela trilha e então eu consegui divisar o som de várias vozes entoando uma melodia de uma nota só. Às vezes alguém parava para respirar e então o coro voltava e cada vez mais o som parecia querer atravessar os nossos ouvidos e chegar no nosso peito. Demorou pouco para que eu percebesse que em pouco tempo Seu Timóteo, sua esposa e o casal Medeiros estavam entoando também aquele som. Eles faziam aquilo com serenidade, quase sorrindo entre si.
E eu sorria de nervoso enquanto minha mão se encharcava com o suor da mão da minha mulher. Meu peito tremia de leve com o grave quase inacreditável daquele som que tomava o ambiente junto das árvores e da escuridão. A carruagem parou. O casal Medeiros desceu primeiro, logo depois Salete e por último Seu Timóteo, que me ajudou a descer e ofereceu a mão para ajudar minha esposa. Ela hesitou. O homem continuou com o braço estendido, tanto como um convite quanto como uma ameaça. Eu só fiquei olhando. Estendi a mão para ela. A iluminação parca das tochas me deu a impressão de que ela olhava profundamente para mim, mas eu só queria que ela descesse da carruagem com segurança. Então ela desceu com minha ajuda e do Seu Timóteo.
Adamastor desceu da carruagem ao mesmo tempo que ela e depois ele fez um convite com a cabeça para segui-lo. Fomos com ele até o local da celebração. Havia uma clareira, circundada por mais tochas. O desenho de um hexágono feito de cal tomava quase toda a extensão da clareira. Cada ponta do hexágono se ligava entre si e com um ponto central, onde havia uma fogueira de no máximo dois metros de altura. O fogo subia três vezes mais. O Adamastor parou e ficou esperando por algo, junto com a gente. A diferença entre nós era sua expressão de calma, quase tédio, como de alguém que está numa missa. Não demorou um minuto para que cada ponta do hexágono fosse preenchida. Em cada ponta estava um casal do Clube dos Sete. A luz do fogo iluminava de forma tosca seus corpos nus, deixando suas pequenas e grandes deformações mais óbvias. Tudo que eles vestiam eram máscaras de madeira com símbolos cujo significado eu não tinha nem como pensar quais eram. E todos entoavam o ruído, suas vozes tomando a clareira e a minha cabeça como se viessem de todos os lados ao mesmo tempo, penetrando meus ouvidos e alcançando meu cérebro inerte.
A única ponta do hexágono ainda não coberta foi tomada por Seu Timóteo e Salete, que chegaram por trás de nós vestidos também com suas máscaras e nada mais. Suas máscaras porém eram maiores e mais enfeitadas que as dos outros. Salete tocou delicadamente o ombro da minha esposa e depois sua mão direita. Sua máscara trazia um desenho que parecia um sorriso, cravado e eterno em seu rosto. Minha esposa me olhou e eu vi as lágrimas escorrendo pelo seu rosto. Eu não fiz expressão nenhuma. Ela apertava minha mão direita. Eu encostei minha outra mão sobre a dela. Seu Timóteo veio até nós e estendeu sua mão para mim. Beijei a mão trêmula da minha mulher. Dei minha mão esquerda para o Seu Timóteo e então ele e Salete nos guiaram calmamente até o centro do hexágono, eles nos guiaram como se caminhassem com uma criança que mal tinha aprendido a andar.
O tom monocórdico das vozes invadiu minha percepção junto do fogo hipnótico da fogueira central. Salete e Seu Timóteo nos colocaram de costas para a fogueira e ficamos de frente para o Clube dos Sete enquanto todos começavam a dar as mãos. Salete fez um ligeiro cafuné em minha esposa, enxugando um pouco de suas lágrimas e depois apertando sua mão como quem diz “vai dar tudo certo”. Depois ela e Seu Timóteo nos deixaram ali e foram para sua ponta no hexágono, entoando aquela música com mais força do que nunca. Minha mulher levou as mãos à cabeça e eu entendi a dor dela. Eu só não sentia do mesmo jeito. Eu só observava tudo. A música era mais forte agora. As vozes ribombavam dentro da minha mente e eu não conseguia tirar os olhos do que acontecia à minha volta, ao contrário da minha esposa, que parecia lutar para se manter em pé. Seu Timóteo e Salete olharam para seus confrades e a música parou.
Só o fogo falou por algum tempo. Seu Timóteo e Salete soltaram as mãos que seguravam e começaram a caminhar na nossa direção. A dois metros de distância de nós, ajoelharam-se. Salete de frente para minha mulher, Seu Timóteo de frente para mim. As máscaras olhavam para nós. O casal ergueu as mãos pro alto como que fazendo algum tipo de pedido ou se oferecendo para algo ou alguém. Baixaram as cabeças. Vi Adamastor se aproximar. Ele trajava uma máscara como a dos outros porém trajava uma túnica branca surrada. Trazia um machado que precisava carregar com as duas mãos devido ao tamanho. Minha mulher ficou de joelhos e deu um grito de horror que eu nunca tinha ouvido qualquer pessoa gritar. Começou a chorar, com as mãos no rosto, num desespero quase palpável. Adamastor, atrás de Timóteo, ergueu o machado e puxou o coro. Ele agora era gritado com a força que o Clube dos Sete parecia retirar das profundezas da terra. A lâmina do machado desceu verticalmente sobre a cabeça de Timóteo. Seu corpo só caiu no chão depois que Adamastor fez uma força extra para retirar a lâmina presa no crânio. Minha esposa gritava, em posição fetal, tapando os olhos. Adamastor deu um pequeno passo para o lado e deu uma machadada na nuca de Salete, que por sua vez caiu meio de lado. O sangue jorrava e a música berrava. Uma poça começou a se formar e beijou meus pés. Minha esposa gritava e respirava com força até que houve um momento em que ela pareceu ceder e desmaiou. Adamastor mexeu nos corpos de Salete e Seu Timóteo e lhes tirou as máscaras. Com a calma que pede todo ritual, ele prendeu a máscara que estava em Timóteo no meu rosto. Com alguma dificuldade, colocou a de Salete no rosto encharcado da minha esposa, que ofereceu pouca resistência ao ato.
Colocar a máscara pareceu ser o fim para minha mulher: ela desmaiou. Na verdade, era só o começo. Adamastor, com ajuda de um outro casal, deitou o corpo da minha mulher à frente da fogueira enquanto uma outra pessoa me colocava meio que ao lado dela. Gentil e respeitosamente, o homem com o machado na mão ergueu a camiseta da minha esposa até seu peito, deixando sua barriga à mostra. Encostou o machado.
Os tempos que se seguiram foram os melhores de nossas vidas.
Fui promovido duas vezes em questão de meses, exatamente como eu queria e esperava. Nosso vínculo com a cidade se tornou cada vez mais forte e bonito. Nossa casa está sendo paga com tranquilidade assim como o carro novo. Minha mulher superou o trauma de perder o bebê com uma nova gravidez. A cicatriz em sua barriga não a incomoda. A mim menos ainda. Mas uma cirurgia para a remoção já está marcada. Uma cirurgiã plástica se mudou recentemente para a nossa rua com sua família e nós agendamos assim que a fomos receber e ajudá-los com a mudança. Talvez ela saiba jogar truco.
Nossa