Vocês acreditam que eu LI um LIVRO? Eu nem sabia que isso era possível.
No caso foi A Quinta Estação, da N.K. Jemisin.
Assim, à primeira vista pode parecer um livro de fantasia meio padrão. Até o nome da autora soa como um nome de autora de livro de fantasia. Tem até um mapinha e um apêndice! Mas ele pega um pouco no contrapé. A fantasia não é medieval (tá mais pra século XIX) e os poderezinhos na real nem são mágicos.
Além de bem escrito, de um jeito muito inteligente que consegue variar em uma escolha de palavras sucinta com alguma coloquialidade, a narração da Jemisin como um todo é muito boa. A estrutura da narrativa é algo bem diferente e se pans é algo que só funciona enquanto livro mesmo, e provavelmente falar sobre ela é spoiler então fica aí no mistério.
A rigor a gente acompanha as histórias de três mulheres, mas o foco principal é na Essun. O trecho dela é narrado na segunda pessoa, o que dá um peso diferente pro rolê todo, e mais ainda mais pro final do livro. Tudo se passa num continente ironicamente chamado A Quietude, um lugar que lida com frequentes problemas de terremotos e outros tremores, principalmente devido à existência de humanos com poderes que podem causar esses tremores. Eles são chamados de orogenes ou, no popular, roggas (qualquer semelhança com “niggas” não é coincidência). Ninguém curte os orogenes, eles sofrem preconceito de todo mundo e a merda agarra quando o marido da Essun mata o filho deles assim que descobre que tanto ela quanto ele são orogenes. Aí já viu né. Aí tá feita a lambança. Aí não tem mais como. A confusão está armada.
É bem bolada a forma como o worldbuilding se mistura à narrativa muito naturalmente, não tem nada em excesso. É um dos motivos pelos quais esse é provavelmente o primeiro livro de trilogia que me deu vontade real de ler os seguintes, então acho que é alguma coisa.
Eu me acho particularmente ruim falando de literatura mas li outras coisas que podem ser dignas de notas aí, como:
Sagarana do Guimarães Rosa (esse cara é bom… pena que às vezes é meio difícil. Tem uns contos que batem MUITO, outros nem tanto)
O Grande Mentecapto, do Fernando Sabino (é muito engraçado como ele deixa de ser um lance quase A Praça É Nossa pra virar algo muito mais complexo na segunda metade… muito por causa do GAP de tempo que ao qual o Sabino submeteu o livro)
E em notas menos “clássicos brasileiros”: Gideon, A Nona, da Tamsyn Muir (altamente doideira e divertido, coisa recente que saiu no Brasil ano passado e é recomendação do Warren Ellis. Fantasia pós-apocalíptica sobre necromantes lésbicas e tretas milenares. A edição brasileira tem várias cagadinhas mas ainda vale)
The Exploding Detective, do John Swartzwelder (roteirista da fase clássica dos Simpsons, o negócio é totalmente absurdo e engraçadíssimo, sempre tem uma puxada de tapete muito sagaz)
Teve mais outros mas por enquanto tá bom.
E esse foi mais um “piores reviews de livro da história”
e agora duas recomendações pra quem curte uns PUTA ROCÃO
esse stoner/sludge/meio indie, tipo uma mistura de Red Fang com Swervedriver, lá de 2002, de uma banda chamada Floor
e dos anos 90, uma banda de emo/post-hardcore do Tonie Joy (um dos responsáveis pelo Moss Icon, grande banda emo do final dos anos 80) chamada Universal Order of Armageddon
na área das novidades tem o novo do Dave Okumu, que é um tipo de neo-soul setentista. Nada muito dançante mas é bem legal, cheio de spoken word a la Gill Scott-Heron
A coisa que Caio mais gostava era o pôr do sol.
O nascer do sol? É legal. Tem seu mérito. Mas o pôr do sol? Um bonito, cheio de nuvens em volta? Com os raios de luz passando amarelos e formando um degradê com rosa e laranja? E o azul de fundo?! Nenhum nascer do sol chegaria nesse nível. Simplesmente não tem como. Não tem.
Na verdade ele não só “gostava” do pôr do sol como ele era tarado pelo pôr do sol. Ele se tornou um caçador de pôr do sol. Sempre que conseguia juntar seu suado salário de contador pra ir viajar, ia atrás do lugar onde ele achava que teria o melhor pôr do sol. Foi pra Nova York. Belo pôr do sol. Muitos prédios em volta mas tem seu charme. Paris: aquela torre atrapalha um pouco. Tóquio: na terra do sol nascente, como é o sol poente? Interessante. Ótimas montanhas, porém. Teve uma vez que houve a chance de ver uma aurora boreal na Islândia, mas preferiu ir ver o pôr do sol na Espanha e se decepcionou. E no Brasil mesmo? Fernando de Noronha, Salvador, Manaus… parabéns pelo esforço, continuem assim.
Caio passou o último fim de semana na casa de uns amigos próximo a uma lagoa. Queria dar um tempo de sua caçada. O descanso do guerreiro. Foram num café que ficava numa pracinha ao lado da lagoa. O café era bom e as risadas eram frequentes com o pessoal mas nada daquilo animava Caio.
A água cintilante piscava para ele.
Ele dava umas olhadas e percebia que o sol batia na superfície, brilhando como pedra preciosa. Era uma visão legal. Parecia combinar com o vapor que saía do café. Estava friozinho. Não demorou para a tarde ir embora, com seu jeito envergonhado. Quando menos se espera, o sol começa a se esconder atrás da lagoa, formando um facho de reflexo na água. Caio segurava a xícara de café na mão e teve que colocá-la sobre o pires com algum cuidado pra não deixar cair. Ficou de pé. Os amigos olharam pra ele, rindo e achando esquisito. O reflexo olhava de volta para Caio. Ele deu três passos na direção da lagoa. Parou. Olhou e olhou mais um pouco. Piscou apenas uma vez e depois ficou apenas arregalado. O que tem nesse reflexo? O laranja e o azul da água se mexiam dividindo um espaço que era apenas uma ilusão. Ou não era? O sol rasgava o céu e as nuvens rachavam o azul de um jeito que Caio nunca tinha visto. Não era só azul. Não era só laranja. Tinha algo a mais. Tinha um verde em algum lugar. Tinha uma cor inexplicável. Em algum ponto tinha uma cor que não deveria estar ali. Ela bonito. Não, não era só bonito, era incrível. Era exuberante. Estava além da beleza. Era diferente. O que era aquela cor? Ela nunca esteve ali. O sol parecia tremer junto com os os olhos de Caio e ele sentia o ardor dele nos seus olhos e sentia o vermelho do seu calor e o azul da água e o laranja do reflexo e a cor que não podia existir, tudo entrava em seu cérebro com um calorzinho afável, um conforto dolorido, um corte de alegria, uma… aquela cor. Aquela cor o atraía. Que porra era aquela? Estava ali mas não estava mais ali. Nada mais existia além do pôr do sol e seus raios-tentáculos puxando Caio para dentro de si, para dentro da cor que existia na irrealidade. Era isso. Era isso que ele vinha procurando esse tempo todo? Seus olhos castanhos ficaram verdes e azuis e alaranjados e daquela cor inexorável e ele se tornou um com o pôr do sol enquanto seu corpo queimava por dentro e seu coração se deixava levar por aquilo tudo, envolto pela cor belíssima e fatal. Caio abriu um sorriso, sem conseguir - nem tentar - fechar os olhos. Tinha encontrado. Era a única explicação. Não precisava de mais nenhuma explicação: para ele, era aquilo e mais nada. A cor o levou para um lugar onde ele não precisava mais existir e nem caçar outro pôr do sol. Estava feliz.
Então seus amigos o levaram pra o Manicômio Santa Aquerupita™ com suspeita de psicose.