isso aqui é muito melhor do que eu esperava
e agora, depois da Inteligência Artificial para produzir imagens, segue aqui o uso da BURRICE NATURAL
À guisa de pesquisa (possível nome de um novo quadro), assisti A Trapaça, de 1997, esses dias.
É um filme do David Mamet e, como tal, é extremamente conciso e simples. Deve ter sido muito barato também. Parece muito um filme dos anos 40 ou 50 só que feito no final dos anos 90. O timing da história, o desenvolvimento do plot, os diálogos, a fotografia, a edição, tudo parece remeter ao jeito como eram feitos os filmes naquela época. Nem sempre funciona, tem uns momentos meio truncados, umas pessoas que surgem do nada nas cenas, parece que algo não encaixa. Mas a narração do Mamet não erra. A história funciona muito. Tem uma energia meio de filme do SuperCine dos anos 90, quase dá pra ouvir o narrador da Globo descrevendo o filme: “um homem muito ambicioso é envolto numa trama perigosa onde nada é o que parece. A Trapaça, com Steve Martin e Campbell Scott”. Ah sim: e tem o Steve Martin num papel completamente sério. E o Campbell Scott com esse cabelo e o oclinhos redondo parece a epítome do yuppismo noventista. Não por acaso.
Eu acho o VAR um troço muito massa.
Pouco me interessa que ele atrapalha a fluidez do jogo, que é chato, que é ruim, que os juízes vão continuar roubando pra quem eles quiserem. O importante dele pra mim é o EFEITO NARRATIVO na transmissão dos jogos. Ele tá ali pra criar mais suspense, dar uma rasteira nos personagens e na audiência, criar um ponto de virada, quiçá um plot twist. Quase todo mundo se abala. É que nem pênalti depois da prorrogação. O que vale é a indecisão. Aliás, por mim podia até não ter mais prorrogação, ir direto pros pênaltis. No caso, seria uma INDECISÃO POR PÊNALTIS.
Mas é, acho, o limite da americanização do futebol: não dá pra ficar parando o tempo inteiro pra propagandas que nem em jogos de futebol americano ou beisebol ou mesmo de basquete. Transformar tudo em números e eficiência e coisa e tal. Ou sei lá também, foda-se
Também acho que podia ter jogos com três times jogando ao mesmo tempo um contra o outro mas vocês não estão preparados pra essa conversa
de vez em quando as Descobertas da Semana do Spotify acertam uma forte
NO EPISÓDIO ANTERIOR: amizades em choque! Preconceito gritante! Banhos demorados de banheira! É uma baboseira atrás da outra.
s01e05: uma vidinha de bárbaro
Valdir nunca tinha ouvido o som de um violino. Agora, está ouvindo dois, junto de um violoncelo (não que ele soubesse diferenciar). Os três homens trajando ternos pretos tocam Mozart para ninguém em particular, criando a trilha sonora para o evento que acontece na maior casa que Valdir e Herivelto já viram. Tecnicamente, era uma mansão, como dizia a placa na entrada.
O plano inicial era entrar para pedir um pouco de água e talvez um pedaço de pão, mas para isso tiveram que falar com um aparelho ao lado do portão dourado, a única entrada na muralha que cercava a casa. A pessoa que falou com eles fez a porta abrir e eles tiveram que andar por três minutos por uma passarela enfeitada com palmeiras até chegar na casa branca e cinza de janelas enormes, cujo formato lembra muito uma caixa de sapato. A alta porta da mansão fica bem no peito de uma esfinge de quatro metros de altura, que por sua vez parece ter sido enfiada à força na arquitetura da casa.
Valdir se sente apenas um pouco deslocado, mas Herivelto se sente particularmente inadequado para o local. Há algumas dezenas de pessoas na casa e todas elas estão bem vestidas, ainda que de jeitos variados. Um homem-ovelha ereto e de smoking para diante deles e lhes oferece de uma bandeja de mini-sanduíches muito complexos. Valdir pega um e acha saboroso. Herivelto não consegue parar de olhar para aquela casa e aquelas pessoas, como se elas tivessem um brilho natural, um brilho que lembra muito as peças de ouro que ele já viu por aí.
— Eu não conheço vocês? — pergunta uma voz de trovão.
Eles viram a cabeça e encontram um homem com um corte de cabelo perfeitamente quadrado, usando um terno prata com um chale bordô apoiado no pescoço, empunhando uma bengala vermelha em uma mão e um copo de uísque na outra.
— Hã, talvez? — sugere Herivelto.
— Vocês vieram para o evento?
— Na verdade, nós… — começa Valdir.
— Sim. Não perderíamos o evento por nada.
Valdir olha para Herivelto, estranhando a resposta.
— Muito prazer, Herivelto. — Ele estende a mão para o homem. — Esse aqui é o meu sócio, Valdir.
O homem faz questão de apoiar a bengala na outra mão para cumprimentar o jovem.
— Eu sou Tacachi. Tenho a impressão de que é a primeira vez de vocês num evento do Khepresh.
— É sim! O primeiro de muitos, eu espero.
Herivelto adorou a sonoridade de “Khepresh”.
— Vocês vieram a convite de quem? — pergunta Tacachi, não em tom acusatório, mas como se todos ali tivessem sido convidados por alguém em específico.
Mil respostas correm desesperadas por dentro da mente de Herivelto mas então a música para. À frente dos músicos, um elfo loiro e esguio convida todos para a sala de estar, e assim eles se encaminham. Herivelto vai junto com eles, ignorando quando Valdir tenta segurar seu braço para impedi-lo de ir em frente.
Herivelto não tinha dirigido uma palavra a Valdir desde Sommarvil, e olha que Valdir tentou. Não imaginou que seu “sócio” pudesse ter ficado tão puto. Caminha junto com todos os outros, sem a mesma empolgação, e fica de pé enquanto todos se sentam em cadeiras douradas viradas de frente para um pequeno palco. O elfo loiro passa por ele em direção ao palco, colocando em sua cabeça um hedjet clássico e logo depois dando uma corridinha batendo palmas. Tacachi vai até o palco também e se senta numa cadeira, ao lado de um outro homem também de terno.
— Beleza beleza, pessoal! Sejam todos bem-vindos. — O elfo ergue as mangas de seu suéter preto. — Tô vendo muitas caras novas por aqui. Legal! Bom, pra quem não me conhece, eu sou Antenor Arvellas, CEO da Arvellas Incorporated, e hoje eu vim falar com vocês sobre o nosso querido Khepresh. Pra isso, eu conto aqui com a presença dos nossos dois Ankh Diamante, Tacachi-san e Sidnei.
Antenor faz uma reverência a eles com a cabeça e puxa uma salva de palmas. Valdir fica de braços cruzados e nota Herivelto batendo palmas junto alegremente.
— Bom, não sei se todos aqui sabem, mas um “ankh” é um símbolo de “vida”. — Ele puxa de dentro da gola do suéter um colar dourado com a forma do tal ankh. — Porque o Khepresh é sobre isso. Sobre aproveitar a vida, tirar o máximo dela, custe o que custar. Porque você sabe que merece.
Faz uma pausa e olha profundamente nos olhos de seu público.
— Mas o que é, exatamente, o Khepresh? É uma oportunidade de você fazer a sua vida ser a melhor possível. A vida dos seus sonhos. Você, por exemplo.
O elfo aponta para Valdir, exatamente porque ele está de braços cruzados, no fundo da sala, sem parecer muito empolgado com o discurso. Tentar não chamar atenção faz ele chamar atenção.
— Qual é o seu sonho?
Valdir engole em seco, mas a resposta vem fácil:
— Bom, é salvar minha esposa e viver com ela tranquilamente fora daqui.
— Então você veio pra Dungeon pra isso.
— Vim pra resgatar ela.
— Muito bem! E quando você resgatar ela, como você vai sustentar a família?
— Eu trabalho como bárbaro, vou juntar dinheiro em missões.
— E vocês vão viver bem?
— S-sim…
— Vocês vão ter tudo que sonham com o que você ganha como bárbaro?
— Eu… eu acho que sim.
— Acha?
— Bom, eu… eu…
— Vai ser o suficiente? Pra aproveitar a vida? Uma vidinha de bárbaro, correndo riscos diariamente, arranjando uns tesouros pífios que mal pagam as refeições do dia depois de matar uns monstros? Essa é a vida que você quer? Essa é a vida que a sua esposa quer?
Antes que Valdir consiga balbuciar uma resposta, Antenor prossegue:
— Deixa eu te fazer uma outra pergunta. Há quanto tempo você está na Dungeon Espiral?
— Algumas semanas, eu acho.
— E o quanto você viu dela?
— Bom, não sei dizer exatamente…
— Ela é muito grande né? E se você tivesse ajuda para explorá-la? Ou melhor: e se você nem precisasse explorá-la?
Valdir não entende o rumo da conversa e não sabe o que responder.
— É por isso que eu apresento a vocês o Khepresh. O Khepresh é o melhor método de explorar a Dungeon Espiral. Como funciona?
Antenor estala os dedos e uma jovem sorridente aparece arrastando para o palco improvisado uma mesa com rodinhas. Sobre ela, uma grande variedade de itens: elmos, pedaços de armaduras, armas, poções, tudo muito cintilante. Vários desses itens são dourados, para o deleite do público.
— Isso aqui é o que o Khepresh oferece para vocês explorarem a Dungeon. O melhor do melhor. Os melhores equipamentos, as melhores ferramentas. Armas mágicas. Bússolas automáticas. Botas de velocidade. Telefones celulares. E, se vocês forem tão bons quanto parecem…
Antenor olha para Sidnei e o homem acena para um criado. O criado por sua vez abre a cortina que cobre uma das paredes da sala. A luz de fora invade o cômodo e junto com ela a visão que faz algumas pessoas suspirarem.
— … vocês poderão ter um desses.
Do lado de fora, está um carro luxuoso brilhando tão dourado que beira o amarelo e o alaranjado.
— Esse Rolls-Royce Phantom todo equipado poderá ajudar vocês a desbravar a Dungeon Espiral. “E como chegar a ter um desses?”, vocês devem estar se perguntando. O nosso método é muito simples.
Algumas pessoas não sabem se olham para o carro ou para Antenor. Herivelto presta muita atenção agora.
— A primeira coisa que vocês tem a fazer é comprar o nosso equipamento básico. Aí você já vai ser um Ankh Bronze. Só ele já vai ser de grande ajuda na exploração da Dungeon. Contém uma armadura, uma espada média, um escudo, uma bússola e um Motorola V3. O que vocês querem fazer depois disso é recrutar a sua equipe, a sua party como dizem por aí. Quanto mais gente, melhor. A sua equipe vai desbravar a Dungeon por você.
Antenor olha profundamente nos olhos de todos.
— A cada uma dessas pessoas vocês vão oferecer o equipamento básico também. Vocês vão receber uma porcentagem grande do valor do equipamento e, quando vocês tiverem recrutado gente suficiente, vocês se tornarão Ankh Bronze III. E aí você ganha um kit com um equipamento ainda melhor. Enquanto isso, cada um da sua equipe vai recrutar sua própria equipe e eles vão comprar o equipamento básico diretamente com vocês. Vocês entendem? Todo mundo explora. Todo mundo sai ganhando. Em pouco, muito pouco tempo, vocês terão a chance de ganhar do Khepresh esse Rolls-Royce e se tornarem Ankh Diamante que nem os nossos estimados Tacachi-san e Sidnei.
Valdir faz uma careta que demonstra estar tentando entender o proceso todo que Antenor descreveu, enquanto ouve uns “uau” e “que fácil” vindo do público. Herivelto está com os olhos brilhando.
— E não só isso, é claro. Vocês vão poder frequentar outras mansões do Khepresh como essa aqui, que estão sendo construídas à medida em que entramos cada vez mais Dungeon adentro, tudo isso com a ajuda de vocês. Vocês mesmo poderão ter suas próprias mansões, quando chegarem a Ankh Diamante.
Mais uma pausa ligeiramente dramática.
— Tudo isso, sua vida nova, começará bastando vocês investirem o equivalente a mil peças de ouro no nosso equipamento inicial. É o suficiente pra vocês darem o primeiro passo na direção dos seus sonhos, para aproveitar a vida do jeito que vocês querem. Por que vocês merecem.
Ele aponta para cada um deles.
— Vocês não estão aqui por acaso. Vocês foram chamados pelo Ankh. Vocês, só vocês, têm o poder de transformar seus sonhos em realidade. É o destino chamando. E o destino está dizendo…
Ele dá um passo e se aproxima do ouvido de Herivelto.
— … “Khepresh”. — Ele se ergue e levanta a voz novamente. — Então, quem vem comigo nessa aventura?
A resposta são gritos de empolgação, palmas, algumas lágrimas, socos no ar ao mesmo tempo em que de algum lugar começa a tocar “I Gotta Feeling” do Black Eyed Peas. Algumas pessoas já começam a tirar notas do bolso, peças de ouro e pedras preciosas de dentro de pochetes. Valdir percebe Herivelto fuçando dentro de sua mochila e corre para segurar o braço dele.
— Ei ei. Isso não vai acontecer.
— Solta o meu braço, Valdir.
— Você não vai dar o nosso dinheiro pra isso.
— Ei! Você deu o nosso dinheiro em trezentos banhos e naquela taverna esquisita. Isso aqui é uma oportunidade de ouro pra m-pra gente. Com licença.
Ele se desvencilha de Valdir, que apenas consegue olhar para ele, sem reação. Revoltado, dá meia-volta e se prepara para ir embora dali, quando vê algo que o faz parar logo no primeiro passo. Na porta da sala, de braços cruzados e apoiado no batente, está o pistoleiro, de cabeça baixa.
— Nos encontramos de novo — diz ele.
Valdir ergue uma sobrancelha.
O pistoleiro pega a aba de seu chapéu e o arremessa pra longe, de forma dramática. O chapéu acerta uma bandeja de um garçom e derruba um punhado de taças. Ele finalmente pode demonstrar seu poder para Valdir e para Tacachi. Ergue a cabeça e deixa seu rosto à mostra: é Iussuque, com um sorriso maligno e uma cicatriz no rosto.
— Ah não — diz Tacachi, para si mesmo.
— Eu não te conheço?
— É claro que conhece, seu merda. — Iussuque dá alguns passos lentos na direção de Valdir. — Você me derrotou. Uma vez.
Ele aponta o revólver para o rosto de Valdir.
— Mas não vai me derrotar de novo.
— Peraí, você não me ajudou lá no Pântano de Merda?
— Sim, porque quem vai te matar sou eu.
Chamas saltam de seus olhos repentinamente e elas voam dançando para o revólver, envolvendo-o. Valdir puxa sua espada e prontamente corre na direção de Iussuque.
— Eien No Shi No Honō No Ya — grita Iussuque, de olhos fechados.
A arma de Iussuque dispara um tiro que parece carregar consigo o fogo que a estava envolvendo. A bala voa pelo ar seguida por uma cauda cônica de chamas giratórias, numa trajetória retilínea mas tremendo com toda a força do disparo, louca para explodir na cara de Valdir.
Iussuque abre os olhos e espera justamente ver a cabeça de Valdir estraçalhada, porém dá de cara com ela totalmente inteira, à sua frente. Antes que consiga perceber, a espada de Valdir cruza sua visão, de baixo para cima, suja de sangue. Quando se dá conta, vê sua arma caindo no chão de porcelanato branco. Agarradas nas armas estão suas duas mãos. Olha para seus pulsos, agora solitários, dois pedaços de carne pingando sangue, com um osso no meio.
Só resta a Iussuque gritar, quando chega a dor. E ele grita muito, muito alto. Cai de joelhos no chão. Envolto em seu próprio desespero, não percebe que o tiro que deu destruiu uma das paredes da sala. Valdir vê a movimentação de criados limpando a bagunça, tentando apagar o fogo, junto com Antenor e outros agregados do Khepresh, incluindo Herivelto.
Tacachi se aproxima sem pressa de um Iussuque deitado no chão, em posição fetal, sujo de sangue.
— Senpai! — berra ele. — Me desculpa! Eu não queria fazer isso tudo. Me perdoa!
— Você só me decepciona. Cada vez mais.
— Nããã-hããooo…
— Talvez você não mereça mais ser um Iacusa.
— O quê? Não diga isso, senpai! Senpai!
Tacachi dá as costas para Iussuque e sai.
Herivelto passa por eles, os olhos vermelhos de fúria. Bate os pés na direção de Valdir.
— Você — diz Herivelto, apontando o dedo no rosto do bárbaro, ignorando o homem sem mãos no meio do caminho — não consegue passar por lugar nenhum sem deixar um rastro de destruição, né?
— Eu?! Foi ele que atirou!
— Olha o que vocês fizeram com a nossa mansão! Sai já daqui, seu idiota.
— “Nossa mansão”? Pode deixar, tô indo embora sim. E você, nem pensa em vir me pedir ajuda depois que se decepcionar com essa merda toda aqui.
— Eu nunca vou precisar de você de novo, do mesmo jeito como nunca precisei!
Valdir guarda sua espada e abre a porta gigantesca da mansão com um chute. Herivelto não o vê ir embora.
つづく