saiu a nova do Death Grips
Por falar em NaçãoRebolation e funk extremo, tá saindo no canal do Kondzilla uma série documental chamada The Beat Diaspora, sobre gêneros musicais periféricos atuais, e que tem a mão de uma galera brasileira que manja muito. Saíram dois episódios por enquanto mas tá valendo demais
Curti muito essa estética “suja” e altamente saturada, os efeitos e a edição, parece que combina muito com o tema.
que tal um techno meio experimental com influências fortíssimas de música da Armênia? É o álbum de estreia do Hagop Tchaparian
então não gostastes. OK. Tudo bem. Temos aqui do outro lado um samba-jazz dos anos 60, por que não?
não gostou também? Então vá roubar cavalo
Aqui na newsletter Não Sei Desenhar, promessa é dúvida. Porém, está na mão: o primeiro dos seis episódios da série de contos que vai abalar o Substack brasileiro.
Agora o problema é de vocês.
Você não está preparado para…
s01e01: me vê um livro
O caderno é colocado no fundo da mochila, soterrado por objetos mais importantes. Valdir ajeita as alças da mochila sobre seus trapézios, uma montanha sólida ao redor do seu pescoço, e por cima dela coloca seus cabelos longos e maltratados. Amarra o cadarço de seus tênis Mike, que há muito tempo foram brancos, e se levanta. Está pronto para sua missão. Pronto para entrar na Dungeon Espiral e resgatar sua esposa.
*
O que se sabe sobre a Dungeon na verdade é um amontoado tosco de boatos. Acredita-se que ela surgiu depois do Cataclisma que castigou a Terra uns milhares de anos atrás, ou pode ela mesmo tê-lo causado. A certeza geral é de que há muitos tesouros nela e que, quanto mais fundo na Espiral, maior o prêmio. Ao mesmo tempo, mais difícil de voltar para a superfície. Herivelto já ouviu falar que é um tipo de cruzamento interdimensional, uma colcha de retalhos onde pedaços inteiros de universos paralelos convivem como se sempre tivessem estado juntos. Valdir pouco se importa.
Valdir é um bárbaro, por profissão e por estilo de vida. Tem um desenho que ele fez de si mesmo no caderno. Ninguém além dele viu esse desenho.
Ele paira como uma rocha diante da entrada da Dungeon - um buraco quadrado de três metros de altura aparentemente feito por alguém que parecia saber o que estava fazendo. Acima da porta, há o desenho de uma espiral e, logo abaixo, o aviso cravado na pedra:
Entre se quiser
Saia se puder
E ao lado uma placa diz “Funcionamento da loja de souvenires: das 8h às 22h sem fechar ao meio-dia.”
Valdir ouve os passos de seu amigo Herivelto, voltando da última mijada antes de partirem oficialmente para a missão.
— Bora? — diz Herivelto.
Valdir apenas faz que sim com a cabeça, e então eles entram na Dungeon Espiral.
*
Os primeiros metros não diferem muito de outras cavernas/dungeons/masmorras que eles já visitaram juntos em busca de tesouro ou resgatando filhos e filhas de pessoas importantes ou simplesmente pela diversão descerebrada de sair matando monstros pra contar a história na taverna depois. Foi numa dessas tavernas que Herivelto viu Valdir amassar no balcão a cabeça de um homem-porco motoqueiro com pouco esforço e pensou que poderia muito bem trabalhar com aquele cara. Ele, Herivelto, seria a parte inteligente e mãos-rápidas, e Valdir seria a indispensável força bruta. Valdir tinha consciência disso. Não se importou na época e até hoje não se importa muito. Mas a divisão dos prêmios é sempre igualitária. A entrada da caverna segue por alguns minutos de caminhada calma, o corredor iluminado por tochas e adornado por mato e insetos não parece em nenhum momento oferecer nenhum tipo de perigo. Os olhos de Herivelto perscrutam o local, alertas, enquanto Valdir apenas caminha. No caderno tem um desenho que Valdir fez de Herivelto (sem que este soubesse).
Uma parede tapa o final do corredor. Eles não demoram a perceber que ela pode ser movida então Valdir a arrasta, provocando um ruído profundo e agudo de pedras se chocando. Dão de cara, então, com a primeira sala da Dungeon Espiral.
São recebidos por um carnaval de luzes quase cegantes e sons confusos que se misturam uns aos outros em ruelas labirínticas, placas de propagandas, pessoas e quase-pessoas dos mais variados tipos e tamanhos vendendo e comprando coisas, aromas variados de coisas comestíveis e não-comestíveis, um ar abafado. Do outro lado da área, no exato oposto da entrada, formando um corredor principal, os estabelecimentos deixam espaço para um portão que um dia já foi cromado. Está aberto mas não dá pra ver o que há do outro lado dele.
Com inevitável estranhamento, Valdir e Herivelto caminham pelo corredor olhando pra todos os lados enquanto mercadores lhe oferecem pedaços de queijo gratuitos, armaduras novas, condimentos, mapas, carne, poções de cura.
— Ei. — pára Herivelto diante de uma lojinha apertada, um corredorzinho onde mal cabe a atendente atrás do balcão. A orc está envolta por centenas de garrafas coloridas, e atende sem vontade os dois clientes. — Como estamos de dinheiro? Seria bom umas poções pra garantir.
Valdir apenas concorda com a cabeça e abre a pochete pra puxar umas notas.
— Me vê… quatro poções de cura pequenas, por favor.
— OK. Qual? — resmunga a mulher, como se Herivelto tivesse entrado numa livraria e dito “me vê um livro”.
— Hã, não sei. Qual você me recomenda?
— Olha, a boa é essa aqui… — ela mostra uma garrafa de “Poção de Cura da Família Kürsten”. — … mas a marvada é essa aqui.
Ela puxa debaixo do balcão uma poção com o rótulo dizendo “Maravilha Curativa do Mago Moacir”.
— É essa mesmo que…
— Não. — interrompe Valdir com sua voz grave. — Qualquer uma menos essa.
Herivelto se lembra que o tal Moacir foi quem sequestrou Brenda, a esposa de Valdir, o que o torna portanto o principal motivo pelo qual eles estão ali naquele momento.
— Pode ser a da família. E de poção contra veneno, o que você tem aí? Tem da Hemmer?
A atenção de Valdir então se volta para baixo. Seus pés sentem o chão tremer, de forma ritmada. Sua percepção lhe diz que algo está se aproximando.
— Tem algo se aproximando. — diz Valdir.
O tremor fica rapidamente mais óbvio e mais perigoso, e junto com ele vem o som de gritos assustados e de objetos caindo no chão de pedra. Está vindo na direção deles. Valdir puxa sua espada da cintura num movimento quase imperceptível a olhos comuns. Encaixa os dedos no cabo da arma com firmeza e fixa seus olhos na direção do portão, de onde sua percepção lhe diz que está vindo o perigo.
O perigo lhe agarra pelas costas.
Valdir é carregado por unhas que se enfiam em seus ombros e lhe arrastam pelo chão quase quicando como uma bola de basquete. Ele consegue perceber que é algo com braços grossos e pernas ágeis, segue pulando pelo corredor enquanto o mantém preso - ainda que provavelmente sem querer. Valdir consegue dar um jeito de apontar sua espada pra cima, sem ver o que ia acertar, e a arma abre um buraco na carne do bicho. Ele solta um ganido e rola no chão, assustado. Valdir se põe de pé e vê um ser de uns dois metros de altura, com porte e braços de gorila e cabeça e garras e pele de lagarto. E uma corrente amarrada no pescoço.
O monstro não demora a buscar vingança: salta sobre Valdir com suas garras, tentando fincá-las em seu peito. Valdir dá um passo para o lado e aproveitando o movimento, faz sua espada fatiar horizontalmente o peito do animal. Ele solta um urro de dor enquanto seu sangue suja a espada de Valdir e uma loja próxima. Cai em cima de um amontoado de utensílios de cozinha, de costas, e tenta se colocar sobre as patas novamente. Valdir vê o momento. A hora certa de cravar sua espada no peito do monstro e matá-lo de uma vez. Não porque acredita que acabaria com o sofrimento do animal (talvez num nível subconsciente), mas porque é o que Valdir faz. Ele mata monstros. Destrói o que estiver no seu caminho. Com sua espada. Como sempre fez. Como sempre fará. Ele é assim.
Valdir aponta a espada para o peito do animal no mesmo momento em que um dardo acerta o pescoço do bicho e uma voz o pede pra parar.
— Não mata ele!
O dono da voz é também o dono do monstro, que se aproxima com cautela ao lado de Herivelto e sua zarabatana. É um rapaz magro, que tem a cabeça de um jacaré de cavanhaque e usa uma camisa social abarrotada. Enquanto começa a puxar o monstro desmaiado, ele explica ainda meio nervoso que esse é um dos monstros que ele vende em sua loja, monstros-segurança para aventureiros que pretendem se embrenhar na Espiral. Inclusive oferece um deles para Valdir e Herivelto, mas eles prontamente negam. Oferece também uma recompensa.
— Fica três mil e quinhentas peças de…
— Não. — Valdir interrompe Herivelto e se volta ao rapaz, que já ia tirando um pacote de moedas do bolso. — A gente só te ajudou. Tá tudo bem.
— O quê?! A gente fez um serviço pra ele!
— Não foi um serviço, ele não nos contratou pra isso.
— Mas Valdir!
— Tudo bem, — diz o rapaz. — podem aceitar. Eu tô acostumado a pagar por…
Ele para de falar. Seus olhos se voltam para a esquina mais próxima. Engole em seco. Valdir faz uma careta e acompanha o olhar dele enquanto sente no ar uma mistura de cheiro de cigarro com um perfume doce e barato.
Encontra três homens. Todos eles usando ternos perfeitamente alinhados, em três tons de cinza diferentes, camisas vermelhas berrantes e gravatas pretas. Os sapatos pretos brilham, usados pela primeira vez. O que parece ser o líder deles é um jovem loiro, de olhos azuis e com uma cicatriz atravessando o rosto.
— Procurando outros seguranças, Jadson? — diz ele.
Puxa um cigarro. Um dos outros homens, um elfo magrelo de topete, saca um isqueiro pra acendê-lo na boca do chefe.
— Se não tá satisfeito com os serviços da Iacusa, era só falar. — ele sopra fumaça,. — A gente ia dar um jeito de te convencer a continuar com a gente.
Ele sorri e deixa escapar uma tossida.