O Jackie Chan original, o Ethan Hunt original, era o Harold Lloyd.
É tudo que eu consigo pensar depois de ver O Homem-Mosca (Safety Last!, de 1923, do Fred Newmeyer e do Sam Taylor). Não tem como: o cerne de tudo que o Chan fez na carreira começou em filmes como esse e do Buster Keaton.
O filme é uma comédia de ação, basicamente. A história per se é de uma comédia de erros, tudo vai escalonando cada vez mais de formas cada vez mais absurdas até cair na set piece final, que culmina em uma das imagens mais clássicas do cinema (o Lloyd pendurado num relógio no alto de um prédio). A cena inicial dá o tom da coisa toda e dá até pra dizer que pode remeter aos erros do personagem do Lloyd que fica eternamente preso nas próprias escolhas cada vez mais doidas, mas o que vem em seguida já é uma piada muito sagaz. O timing cômico é meio impressionante assim. O Lloyd é o oposto do Buster Keaton: onde o Keaton tem aquela cara deadpan, uma expressão quase sem expressão, o Lloyd reage o tempo inteiro às coisas e isso é parte importante da proposta. Toda a mise-en-scène parece girar em torno do Lloyd e de como ele atua no espaço, ele magnetiza tudo de alguma maneira.
Maluco que é a lata do JJ Abrams vai pra cidade grande num emprego mixuruca e, no meio da pressão de funcionar em uma sociedade que exige cada vez mais dele, diz pra namorada que tem um empregaço enquanto na verdade divide apê com um outro fudido e gasta o pouco dinheiro que tem comprando presentes pra moça. Aí A Confusão Está Instaurada. O roteiro é muito redondo e desde as sequências iniciais tudo parece mirar na cena final, em uma estrutura tradicional de filme hollywoodiano clássico. Muito da narração visual da coisa vai reverberar até na forma de contar piada de caras como os irmãos Zucker (inclusive os intertítulos são muito bem escritos e usados de forma criativa) e tal mas também no cinema de ação.
Tem no Youtube com legenda em português pros intertítulos e numa cópia crocante:
Cheguei um pouco atrasado no Clube da Esquina 2, mas não me arrependo. Talvez seja melhor que o primeiro? Vários hits fortíssimos aqui. Já abre com “Credo”, sabe? Puta merda. Por mais que eu ache “Maria Maria” enjoada, tem várias outras que compensam.
Ainda nos anos 70, tem esse álbum do Dakila, uma banda de integrantes filipinos. Obviamente psicodelia hard rock setentista, misturado com coisas filipinas mais tradicionais.
EP novo da Nilüfer Yanya tá naquele pique: indie rock meio shoegaze, às vezes mais pop, melodias hipnóticas… fino
É o Garas, não tem jeito
Garantido campeão de Parintins 2025 é o povo alegre de novo. Veja bem: eu assisti muito pouco do Festival esse ano, mas tudo que eu vi me fez querer ser João Paulo Faria quando crescer. O JP é o Amo do Boi Garantido, um cara cuja função na apresentação é fazer umas rimas cantadas e, frequentemente, provocar o boi contrário na caradura. O trampo do JP foi muito diferenciado esse ano. Teve vários trechos que remetiam à história pregressa do Garantido, chegando a trazer pro palco o primeiro “boi biônico”, o de 1978…
… além de trazer o autor de “Vermelho”, grande hit dos anos 90 e promover a troca do Tripa ao vivo. (O Tripa é o cara que controla o boi na quadra, o cara que fica dentro do boi. O Tripa desse ano tava ali há 30 anos e passou a incumbência pro filho dele. Forte, tá?). O melhor ficou pra terceira noite, o que me parece uma estratégia bem planejada de ambos os bois, uma vez que são três noites de apresentação. O lance de ele falar direto pra câmera e puxar a foto do antigo amo do Caprichoso que foi pro Garantido: muito bem pensado, brabo demais.
Pink Squirrel (parte 3)
Antônio serpenteava pelo mar verde que se assomava à sua frente. Às vezes, olhava para trás, imaginando a possível presença de alguém lhe perseguindo. Seguia correndo, sem parar e sem se importar com destruição do milharal. Quando achou que estava no meio do milharal, olhou para trás mais uma vez e suas suspeitas se confirmaram: o homem mascarado surgiu como uma assombração. Antônio acelerou, farfalhando pela plantação, mas o farfalhar do homem mascarado se aproximava dele assustadoramente rápido. Antônio fez uma curva para a esquerda, buscando despistar seu perseguidor. Abaixou um pouco o corpo e continuou correndo. (Na sala da casa, Ailton analisava uma série de gráficos em tempo real enquanto mastigava um sonho de goiabada.) Antônio buscou uma curva agora para a direita, depois seguiu reto por mais alguns metros. Teve a impressão de ter visto um vulto à direita de sua visão periférica: era o mascarado, surgindo por cima dos milheiros. Antônio levou um susto mas seguiu correndo, abrindo seu trajeto cada vez mais à esquerda para poder se afastar da máscara de borboleta que, de seu lado, parecia se aproximar cada vez mais. (Ailton tomou um gole de café e viu o gráfico da velocidade aumentar a níveis ligeiramente além dos níveis humanos padrão. Gostou do que viu.) O homem mascarado se aproximava mas Antônio percebeu que ele passou a correr ao seu lado. Talvez até tivesse a chance de pegar Antônio, mas decidiu mudar de ritmo. O que significava aquilo?
O mascarado então simplesmente parou de correr. Antônio achou aquilo ainda mais estranho, só seguiu em frente, olhando a máscara ficar cada vez menor. Quando olhou pra frente de novo, deu com a cara no arame farpado.
* * *
Sete band-aids, três feridas costuradas e mais dores em lugares variados.
Ailton terminava os pontos no ombro de Antônio, sem pressa.
Antônio não tinha dito nada desde o acidente. Deixou-se levar pelo homem mascarado. Cansou daquela loucura toda. Estava quase sem forças mentais para continuar o que quer que fosse o que estava ocorrendo com ele naquele lugar. Sentado na cadeira de palha, olhava para o teto, o único lugar que parecia mais ou menos normal no meio daquilo tudo, a única coisa que parecia ter uma estrutura real chafurdando na doideira.
Ailton terminou o serviço, limpou as mãos e comeu o último pedaço de sonho.
— Pronto. Mais cuidado na próxima, hein, bello.
Antônio continuou olhando para o teto. Não sabia o que dizer ou se tinha que dizer algo, mas uma pergunta parecia estar tomando conta de sua mente, gritando em seu ouvido, torturando-o. Uma pergunta que fez ele baixar a cabeça e, com um fiapo de voz, falar:
— Cara… por quê?
Não havia raiva na pergunta, mas cansaço, algo de revolta e, de forma mais proeminente, uma dúvida real.
Ailton respirou fundo e soltou ar pelo nariz, roncando ligeiramente. Coçou a barba.
— Bom — disse ele. — Tinha que ser tu.
— Como assim?! O que isso quer dizer?
Ailton puxou uma outra cadeira, colocou-a de frente para Antônio e sentou. Pegou uma xícara de café e a apoiou sobre a pança. Olhou taciturno para o homem à sua frente. Antônio esperou.
— Eu te inoculei com um composto recombinador de DNA.
Antônio continuou esperando.
— Isso quer dizer que tu sofreu umas mutações genéticas.
— QUÊ?!
— Mas calma! É tudo coisa boa. Eu vi que a tua capacidade física melhorou muito, por exemplo. E tá só começando: tu provavelmente vai ficar mais forte, ou mais…
— “Provavelmente”?!
— É, é isso que a gente tá testando.
— E por que não me avisaram disso? Me sequestrar era a melhor forma de fazer isso?
— A gente tinha pouco tempo. E, bom, a gente é uma equipe pequena… a gente tem outras preocupações, no fim esquecemos da reinoculação.
— “Esqueceram”?!
— Eu sei, eu sei! — Ailton respirou fundo e tentou acalmar a situação. — Olha, bellinho… não é fácil, mas é tudo pro teu bem, e pro bem de todo mundo, tá?
Antônio avançou sobre Ailton, agarrando-o pelo colarinho e derrubando-o no chão.
— Pro meu bem?! — Antônio arranhava a garganta ao falar. — Como isso pode ser pro meu bem, seu filho da puta? — Seus olhos estavam injetados, prestes a saltar das órbitas. Houvesse um demônio dentro dele, saltaria da sua boca com mãos furiosas para abrir a cabeça de Ailton com um puxão e esmagar seu crânio.
Um segundo depois, as mãos gigantes do homem mascarado o levantavam. Antônio se debateu em vão, o mascarado o agarrou se fosse um animal de estimação inquieto.
Antônio foi colocado de volta em sua cadeira. Ailton se limpou, colocou sua cadeira de volta no lugar e se aproximou do rosto de Antônio.
— Bello. — Uma pausa. — O que você lembra do teu primeiro emprego?
Antônio pareceu ter levado um soco mental, como se sua cabeça tivesse sido retorcida e chacoalhada.
— Meu primeiro emprego?!
Ailton esperou pacientemente pela resposta.
— Eu era office boy de uma empresa de um conhecido do meu pai. Mal parava no escritório, ficava andando pela cidade entregando coisa.
— Quantos anos tu tinha?
— Sei lá, uns… catorze, quinze anos?
— Tu foi contratado dois meses antes de fazer catorze anos.
Antônio levou outro soco no cérebro, virou sua cabeça como um cachorro confuso.
— Você era…?
— Eu trabalhei na mesma empresa. Só que em outro setor. Era um setor lá… escondido.
— OK.
— Tu não lembra do teu aniversário de catorze anos, né?
— Eu lembro de ter comemorado… acho… teve um bolo…?
— Não, só um parabéns e uns salgados que tu mesmo comprou. E teve outra coisa que tu não lembra.
Antônio ficou esperando.
— A gente te inoculou com um composto recombinador de DNA.
Ailton viu Antônio se levantar e rir ironicamente.
— Era só pra ativar e fazer o teu corpo agir nas mutações, antes da segunda inoculação.
— Que foi a que vocês fizeram hoje, eu espero.
— Isso.
Antônio não lembrava de nada. Não acreditava naquelas palavras. Nada fazia sentido.
Porém fazia. Ele só não queria admitir, mas sentia que era verdade. Ou, pelo menos, sentia que alguma parte de seu corpo queria acreditar naquilo. Uma parte contra a qual ele lutava. Andou em volta da cadeira, perplexo. A pergunta surgiu de novo, como um velho costume:
— Mas… por quê?
— Tu era o que a gente tinha às mãos. Era o meu trabalho. Eu não tinha escolha.
Antônio já não sabia nem o que dizer a seguir. Só conseguia ficar boquiaberto, aturdido. Deu alguns passos pelo galpão, sem rumo, rodando, as mãos na cabeça.
— E o que acontece comigo agora?
— Bom… eu tenho uma ideia.
E era a pior ideia que Antônio podia ter ouvido naquele dia.