Eu sei que futebol não costuma entrar nas editorias desta revista eletrônica mas como alguém que só acompanha um jogo ou outro em momentos muito específicos e não torce pra time nenhum… Fluminense dando um sufoco no Borussia Dortmund??? Botafogo ganhando do Paris Saint-Germain????
Sinto que eu tenho que repetir: Botafogo ganhando do Paris Saint-Germain???
Essa Copa do Mundo de Clubes é só alegria. E nem começou o mata-mata - ou seja, possibilidade de decisões por pênaltis - ainda!!! Haja coração, amigo. Os jogos são todos correria, chute pra todo lado, pouca enrolação. O suspense é garantido. Acabem com essas porras de liga, transformem tudo em copas. Não sei como, se vira aí.
Obrigado FIFA por ser essa instituição totalmente idônea e por nos proporcionar mais uma vez o espetáculo do futebol, de nos permitir ver o Cuiabano descendo uma rasteira no Kvaratskhelia.
Jazz-fusion doideiraça da União Soviética esse segundo álbum do Anatoliy Vapirov. Maluco chegou a ser preso pelo governo da época e lançou dois álbuns por um selo britânico sabe-se lá como depois se mudou pra Bulgária. Momentos.
E o novo do FBC, que mergulhou total num revival do gangsta rap/boom bap pesado a la Onyx do começo dos anos 90, chamando todo mundo pra enfrentar o capital? Tem até uma música em que o coro grita “lutem” como que gritando “Wu Tang”. Muito bom.
E eis que o King Gizzard And The Lizard Wizard lançou o álbum completo que vai na mesma onda do EP recente que eu comentei aqui: psicodelia só que agora focada em canções e melodias muito bem construídas e em vibes quase AOR, cheias de naipes de metais, às vezes violinos, tudo muito variado e criativo. Provavelmente um dos melhores deles, junto com o Nonagon Infinity.
… E O Noivo Voltou (No Room For The Groom, 1952), do Douglas Sirk, é uma comédia romântica em que o sexo, o amor e a amizade se sobrepõem a família e ao dinheiro, basicamente. Casal (os lendários Tony Curtis e Piper Laurie) só quer saber de consumar o casamento só que as circunstâncias em volta os impede. Uma dessas circunstâncias é justamente a família da noiva, em especial a mãe dela, uma senhora que só quer saber de jogar, fumar e beber (às vezes ao mesmo tempo) mas esconde isso de todo mundo, e quer porque quer casar a filha com o chefe da moça, um ricaço da cidade, um partidão. Esse partidão por sua vez prometeu emprego pra família toda dela, e botou todo mundo pra morar na casinha do homem do casal. Aí A Confusão Está Armada, É Um Verdadeiro Deus Nos Acuda e Pernas Pra Que Te Quero. A decupagem do Sirk frequentemente mostra a divisão e a oposição entre todos esses personagens, com um timing sagaz em vários sentidos.
Não é o mais clássico dos Douglas Sirk e nem o mais colorido (muito pelo contrário, é PB), e supostamente é um filme esquecido pelo próprio, mas parece ter muito da visão dele aqui, de colocar o romance principal no contexto social da época e tal. E tem só uma hora e vinte!
Tem no Belas Artes À La Carte e no Youtube sem legendas e sem ser em HD. E não se acha nem uma porra dum trailer nesse site??? Como assim. A cena abaixo de qualquer forma resume bem o rolê:
Pink Squirrel (parte 1)
O culto havia começado fazia pelo menos umas quatro horas, pelos cálculos de Antônio. Não era possível que pudesse durar tanto. Aquela cantoria incessante, que o impedia de aproveitar um domingo tranquilo com seu gato, lendo um livro, ouvindo sua música. A igreja era pequena, estava a duas quadras de distância, mas era como se ele mesmo estivesse dentro do galpão alugado, recebendo aquelas bençãos forçadamente como alguém que tivesse um demônio no corpo.
Antônio já estava começando a achar que tinha mesmo.
Um demônio que ia esgarçar sua pele até o ponto de arrebentá-la, abrir seus órgãos de dentro pra fora e saltar pela boca num grito de fúria e desespero. Um demônio que iria puxá-lo para fora de casa como quem tira o lixo, atravessar as duas quadras e chegar na igreja berrando contra todos os presentes. Batendo na porta, xingando todo mundo, alegando que deus não é surdo. Provavelmente ia jogar um copo de cerveja no meio da multidão. Depois daria meia volta e voltaria pra casa com o alívio de quem cumpriu seu dever. Deitaria na cama e dormiria, sossegado.
Antônio já não podia mais ficar em casa. Tinha que sair, ir pra qualquer outro lugar. Não iria perder o réu primário por isso. Usou a pouca força de vontade tradicional de domingo para botar um pouco de comida pro gato e pegar seu boné do Botafogo de 95, aquele com a logo do Seven Up na aba. Saiu como estava: moletom surrado, bermuda suja e chinelo.
Só depois de chegar na esquina é que se deu conta de que não tinha para onde ir. Arriscou chamar uns amigos no Zap. O Mateus não respondeu. A Luiza não podia. O Jota estava fora da cidade. Não sobravam muitos outros. Ele só queria aproveitar um domingo, seu único dia de folga, o momento da semana em que ele não precisava fazer nada e só queria não ser incomodado. Não era pedir demais. Ou era?
Estava vendo o que contatos do Instagram estavam fazendo, parado numa esquina, quando não viu um furgão bordô se aproximar com a porta aberta. Uma luva de couro preta o puxou para dentro do veículo a trinta quilômetros por hora, fazendo-o derrubar seu celular. Antônio foi arrastado por alguns metros até a mão arremessar seu corpo inteiro para dentro e fechar a porta.
(No Whatsapp, a Mari respondeu “não tô fazendo nada, quer fazer alguma coisa?”)
Antônio pestanejou. As pernas machucadas, as costas doendo com o impacto. O furgão recendendo a cerveja velha. Ia reclamar quando viu o tamanho do homem que usava as luvas de couro. Seu corpo parecia cobrir toda a parte interna do furgão, estava dobrado como um intestino. Quase não cabia ali dentro. O homem usava uma máscara preta com uma borboleta branca, e um abrigo cinza da Adidas que permitia divisar com facilidade o tamanho de seus músculos. Antônio de repente achou melhor não dizer nada.
Viu voar da frente do furgão um pedaço de tecido preto: uma balaclava. Quem a jogou foi a motorista, uma mulher de cabelos loiros ralos que parecia ser o exato oposto do homem mascarado. Atarracada, dirigia quase pendurada ao volante, nervosa com alguma coisa. A balaclava apareceu de novo na visão de Antônio, estendida pelo homem de máscara. Antônio a segurou sem nenhuma grande reação. Olhou para o objeto e depois para o homem de máscara.
— Bota aí — disse o tanque de guerra humano, com uma voz grave e anasalada.
Antônio não conseguiu seguir à recomendação do homem logo de cara. Estava assustado demais. Suava como nunca suou na vida. Sentia muito calor, o fedor de cerveja lhe trazia ânsia de vômito e memórias de festas da adolescência, o que lhe trazia ainda mais ânsia de vômito.
— Bota aí, caralho — disse o homem de novo. Antônio atendeu.
A balaclava tinha tecido onde antes havia buracos para os olhos. No escuro, Antônio arriscou esboçar uma pergunta.
— Pra onde vocês tão…
E a própria balaclava lhe deu a resposta inevitável.
O furgão velho roncava cansado, trabalhando com o pouco de força que lhe restava. Antônio sentiu o asfalto acabar depois de passarem por alguns semáforos. A mulher dirigia como um atacante fominha atravessando o campo para chegar na grande área adversária num contra-ataque. Ela só se comunicava xingando os outros motoristas ou apertando a buzina. O homem mascarado não falou nada a viagem inteira. Antônio também não conseguiu dizer nada. Achou melhor ficar sentado no seu canto, curtindo as dores, a ansiedade e o medo. Chegou a pensar em perguntar mais coisas, mas sabia que não daria em nada. A estrada de chão batido pareceu durar por cerca de uma hora, após voltas e voltas nas quais Antônio nunca seria capaz de se localizar. Morava naquela cidade desde pequeno mas nunca tinha percebido uma estrada de chão tão próxima. Talvez ele não conhecesse nada mesmo da cidade. Sabia de um bairro mais afastado do centro em que fora anos atrás para uma festa de aniversário da amiga da ficante de um amigo. Talvez fosse o mesmo. Antônio passava mal quando fumava mas não negaria umas pitadas agora: sentia como se um demônio estivesse mastigando seu estômago, puxando seu cérebro pela garganta. O mesmo demônio que abriria um rasgo em sua barriga, um ser de carne e pus e garras que voaria no pescoço do homem mascarado, rasgaria sua pele e arrancaria a cabeça junto com a coluna vertebral. Depois, envolto numa mistura de sangue próprio e do homem, puxaria os cabelos da motorista e a jogaria contra a janela do banco do carona.
Antônio voltou à realidade quando o furgão saltou uma lombada e isso o fez dar com as costas no chão e gritar de dor. Aproveitou para encolher-se mais um pouco no seu cantinho, onde estava seguro e intocável, em sua humilde posição fetal.
O furgão tremulou pela estrada de chão por mais tempo do que Antônio gostaria, bateu por alguns buracos e, finalmente, diminuiu a velocidade para virar à direita. Eles entraram em algum lugar, Antônio parou de sentir a luz vinda da janela. O furgão foi desligado. Antônio engoliu em seco.
Sentiu o furgão ficar mais leve com a saída do homem mascarado, que abrira a porta e fechara em seguida. A motorista fez a mesma coisa. Antônio tentou se concentrar para tentar entender onde estava. Ouviu quero-queros ao longe e algum tipo de queda d’água. Algo se sobressaiu sem exigir a atenção dele: o cheiro de bosta de vaca. Cheiro de serragem. Antes que pudesse se preocupar com outras peças de seu quebra-cabeças mental, a porta traseira do furgão se abriu – o que fez com que Antônio rolasse e batesse de novo as costas, agora no chão batido. Não teve tempo de ter outras reações: foi puxado por alguém (provavelmente o homem mascarado) até uma cadeira, onde foi algemado pelas costas. A cadeira tinha um assento de palha e era quase bamba. Antônio arriscou se levantar mas foi puxado de volta pro chão pelas mãos assustadoramente grandes e geladas do homem de máscara. Essas mesmas mãos prenderam o corpo de Antônio como garras.
— Dio can — disse uma voz grave a alguns metros de Antônio —, tira a máscara do rapaz, coitado. Agora não faz mais diferença.
O homem mascarado arrancou a balaclava de Antônio num puxão único. Os olhos de Antônio aos poucos foram se acostumando à luz. Piscando, ele viu se formar na sua frente a imagem de um homem de meia idade, pança proeminente aparecendo por baixo da camisa polo verde-água, e um guarda-pó que há muito tempo fora branco. Luvas de borracha azuis completavam o modelito.
Se, como se diz, a barba é a maquiagem do homem, este senhor estava maquiado como um palhaço.
Ele sorriu para Antônio. Não um sorriso maldoso e sarcástico. Um sorriso breve e meio sem jeito, complementado por um meneio de cabeça e um “tudo bem” que indicava uma simpatia profissional entre os dois. Antônio só não entendeu nada. Estavam em um galpão de madeira velha, talvez um estábulo. Pé-direito alto, iluminado pela luz que vinha da rua através de um portão por onde o furgão parecia ter entrado tranquilamente. A luz azulada das lâmpadas fluorescentes não fazia muita diferença. Num canto, a motorista descansava, bebendo de um copo de leite, as pernas cruzadas displicentemente. Antônio suava e tremia, talvez o clima estivesse muito úmido.
O corpo do homem de guarda-pó encobria uma pequena mesa metálica. Dela, o homem pegou uma seringa do tamanho de uma faca de pão. Uma seringa cheia de um líquido alaranjado, um pouco fosco.
— Tu prefere o braço esquerdo ou o direito? — perguntou o homem.
(continua)