Não Sei Desenhar Ɏ176 - 21/03/25
a sua revista eletrônica semanal sobre pagar pra ver tcharroladrão
Gostas de um roque? Um roque porém melódico? Duas opções direto dos anos 90:
O álbum Fantastic Planet, do Failure, altas guitarras e melodias bem pop e grudentas de um jeito bom (e o clipe do hit do álbum faz homenagem a aberturas do 007 das antigas)
Puxando mais pra um indie guitarreiro quaaase emo, tem o segundo álbum do Hum. Aqui o lance é um pouco mais deprê e ligeiramente mais experimental, mas ainda tá mais pra um shoegaze noventista.
Quem voltou ano passado e eu só fui descobrir recentemente foi o Skrotes, trio de Floripa de prog jazz psicodelia droguinagem que se pans saiu com seu melhor álbum depois de anos parado
Teve uma vez que eu quis ser diferentão, só que eu só tinha uns 13 anos de idade e um computador sem caixas de som. A internet era insípida e eu não podia ouvir MP3. Só restava loja de CD, e de cidades do interior de Santa Catarina - curadoria não era bem o forte do rolê. Saí de uma loja com um álbum do Fastball, relevantíssima banda cujo único sucesso foi aquela The Way
Isso pode surpreender muita gente, mas o CD era meio merda. Nunca ouvi ele muito.
Moral da história: se possível, não more em Urussanga/SC no ano 1999. Ou se quiser more, quem sou eu pra né
O maior problema de Quincas Borba, do Machado de Assis, é que o nome do protagonista do livro é Rubião. Aí o cara faz automaticamente a conexão com “Rubão”, e aí fica com a música do Charlie Brown na cabeça. É uma pena. Mas o livro é bem bom, fazia tempo que eu não lia um Machado. Aqui tá num estilo mais direto, com capítulos bem curtos, uma narração crua e irônica de uma história que parece bem crítica à alta sociedade da capital do Brasil da época.
Eu tenho a impressão que Cidade Nua (1948, do Jules Dassin) é um precursor espiritual de The Taking of Pelham 123 na forma como ele trata o processo investigativo policial e sua relação com os habitantes de Nova York. Ele propõe quase um distanciamento irônico em relação aos investigados. No começo, principalmente, tudo é tratado no limite de uma comédia. Aos poucos a coisa vai ficando mais séria, mas em Cidade Nua tem um atenuante no lance desse distanciamento: o filme tem um narrador em off, o produtor do filme. Ele fala às vezes demais, comentando certos trechos do filme, e o resultado é curioso. Com frequência ela é usada de uma maneira esperta, pra trazer informações novas de um jeito bem bolado.
A narração parece fazer sentido no contexto: é um filme sobre uma das várias histórias das 8 milhões de pessoas que moravam em Nova York. É como se o filme fosse fechando um zoom em uma delas, e quase por acaso é uma história policial. Consequentemente, é um filme muito interessado nos processos da polícia, em como isso se desenvolve. Supostamente filmado todo in loco, fora de estúdio (coisa rara pra Hollywood dos anos 40), o filme tenta buscar um realismo, uma coisa tátil e viva da cidade em volta, mas ao mesmo tempo uma mitificação da cidade, trazida justamente pela narração.
Tecnicamente ele é noir - há uma degradação moral em curso e uma conspiração que se desenrola. Mas ele parece otimista e quase “alegre” demais pra se enquadrar no gênero. E o foco puramente na investigação do ponto de vista dos policiais, que são retratados com uma vida razoavelmente idílica, não parece combinar com o que se espera de um noir. Na real acho que a visão que eu tenho do que é um noir ainda é um pouco tacanha.
Eu consigo ver também, guardadas as devidas proporções, algo em que The Wire pode ter se baseado, nessa tentativa de buscar um realismo do processo policial e de colocá-los como parte de uma cidade tão grande. É claro que na série o escopo é muito diferente e mais complexo, mas tem um cheirinho assim.
Tem no canal Cine Antiqua no Youtube.
revista CAGÃO BRASIL apresenta: Jeanne Dielmann para 3DeT Victory
A pá entra no monte de terra. Joga-a para dentro do buraco recém-criado. O ritmo é frequente e direto. O homem que manuseia a pá já está acostumado. São vinte e três anos fazendo aquilo.
Essa é a primeira vez em que o enterrado levanta o braço no meio do processo.
O coveiro sobressalta. A pá cai. O morto se ergue, acabando de acordar. Envolto pela terra, vai recuperando a consciência aos poucos. Dá de cara com o coveiro, boquiaberto. Olha em volta: é um cemitério. Apoia o corpo nas bordas do buraco, e então pergunta:
– Eu morri?
O coveiro não consegue dizer nada por alguns segundos, até que as palavras escalam a garganta dele sem força:
– Era pra ter morrido.
– Merda.
O ex-defunto se livra aos poucos da cova, tentando limpar o máximo que consegue de seu terno azul-marinho e seu sapato de couro preto. A camisa, previamente branca, já era. O coveiro não é capaz sequer nem de ajudar o homem reerguido.
– V-você… – ele tenta dizer.
– Na verdade, não. Não era pra eu ter morrido. Quero dizer… – Ele bate o paletó tentando tirar o grosso da sujeira. – Eu não morri, não sei se isso ficou claro. Assim, me envenenaram. Mas eu tinha tomado um troço pra me proteger do veneno, por que eu já presumia que iam querer me envenear. Entendeu? – Respira fundo. – Pelo visto o veneno é forte mesmo. Ou nem tanto, né?
O não-cadáver larga uma risada. O coveiro arrisca achar graça naquilo. O humor da situação chega a lhe passar pela cabeça mas vai embora assustado, sem nem querer se estabelecer porque tá tudo uma bagunça. A mão do desfinado oferece ajuda ao coveiro, mas ele tem medo de encostar naquilo. O ex-defunto compreende o lado do coveiro, então pega a pá e oferece o cabo para erguer o homem do chão. O coveiro se deixa puxar pela pá.
– Tem algum telefone aqui por perto?
– A-ali… – A mão trêmula do coveiro aponta para a entrada do cemitério. – No escritório.
– Posso usar?
O coveiro faz que sim com a cabeça trepidando.
– Obrigado, amigo!
O ex-defunto sai agradecendo com um tapinha no braço do coveiro, que leva um susto.
Mal cabe o coveiro na salinha. Há espaço pra uma cadeira, um armário velho de metal, uma pequena TV preto e branco, uns papéis jogados e um telefone cor de creme. A cadeira de plástico onde o coveiro passa as noites sustenta agora o peso dele todo na ponta do assento. As mãos apertam os joelhos enquanto ele vê o homem discando uma quantidade absurda de números. Depois de chamar algumas vezes, alguém atende e o ex-defunto declara:
– Em Bardou, na região da Dordogna… – Ele para e fecha os olhos. – Em Bardou, na região da Dordogna, pedi um chatti pathiri e estava saboroso.
Os olhos do coveiro não saem do ex-defunto. Com a cara marrom de terra, o homem lhe sorri com seus dentes perolados. Uma musiquinha de espera parece tocar do outro lado. Até que:
– Oi. Sofri um D-714. Isso. OK. O endereço é o seguinte.
O ex-defunto passa o endereço que o coveiro havia lhe entregue num papelzinho. Depois agradece e desliga.
A TV está passando algum filme velho, que os dois assistem por cerca de meia hora enquanto fumam. Trocam poucas palavras. O coveiro não sabe nem por onde começar, apesar da aparente simpatia do desmorto.
Antes que o coveiro consiga concatenar os pensamentos e começar um interrogatório, um barulho se aproxima do cemitério, vindo do céu. Um som de máquina, rápido e repetitivo.
– Minha carona chegou.
O coveiro olha para fora e depois para o ex-defunto. Quando os dois saem do escritório, já está sobre eles um helicóptero fazendo voar poeira por todos os lados e fazendo um estardalhaço quase ensurdecedor. O ex-defunto oferece a mão ao coveiro, em agradecimento.
O coveiro aperta a mão do homem com sua mão calejada. Depois o vê saltando numa escada feita de corda e subindo para dentro do veículo que some no céu acinzentado.
Há silêncio novamente. Até porque o coveiro desmaiou.
agora vou ali pagar pra ver tcharroladrão