Partido Alto (documentário filmado em 1976 e lançado em 1982, do Leon Hirszman com participação do Viola’s Little Paul) parece ser quase uma transposição da música que ele registra: consegue elaborar uma simplicidade e uma espontaneidade muito particulares, através de imagens muito diretas e uma construção sem firulas.
Pra além disso, não sabia da proposta de improvisação do partido alto enquanto gênero musical, por causa do lance da roda de samba e tal (o que faz muito sentido levando em conta as estruturas das músicas, focadas na repetição de refrões muito marcantes). Essa que é a força do partido alto, diante do samba “de espetáculo”, como diz o Candeia em determinada parte do filme. “Um bom partideiro só chora cantando”, ele canta.
A baguncinha gostosa que o filme registra se resume num plano específico em que, no meio de uma roda, enquanto a câmera foca num cara que cantando, surge um outro lá de longe e começa a dançar o miudinho na frente da câmera. Não pode ser sobre outra coisa que não sobre isso.
Muito forte o instrumento do Tantinha ser um prato e um talher.
Tem 22 minutos e tá no Youtube.
Figura central no documentário, claro, é o Candeia. Ele morreu em 78, portanto dois anos depois das filmagens. Não parece ser por acaso que a primeira música que ele aparece cantando é justamente Testamento de Partideiro: o próprio filme é o testamento do Candeia.
Pra além disso, ele tem álbuns como esse aqui de 71
(Não tem só partido alto no samba dele, ainda que a influência esteja sempre permeando tudo de alguma forma)
E eu que não sabia que o The Dare, do qual que já falei algumas vezes aqui, e que fez um dos meus álbuns preferidos do ano passado, produziu Guess, da Charli XCX com a Billie Eilish??? E que é uma das melhores do Brat???? Do nada vendo a apresentação dela no Grammy, de repente surge um moleque loiro de terno lá no meio da dança.
É o próprio. Ele também aparece por menos de um segundo no clipe da música.
Mais um passo sagaz da Charlie XCX. E a apresentação do Grammy em questão ainda parece fazer referência a uma apresentação clássica dos Beastie Boys no Letterman.
Tiny Desks que o tempo esqueceu: Otoboke Beaver
Fiz um rabisco meio aleatório
e dele saiu um conto:
イルマーの夢
um conto
O alarme não perdoa. As luzes vermelhas piscam nos monitores. As informações saltam todas ao mesmo tempo nas telas escuras, indicando todo o necessário e além. Todas as condições estão corretas. Todas as equipes estão trabalhando juntas na sincronia que tantas vezes foi ensaiada. Tudo. Tudo. De acordo com o planejado. Ilmar limpa o suor da testa em seu canto enquanto hiperventila. Achou que estaria mais tranquilo, mas beleza.
O alarme não lhe ajuda. O berro repetitivo começou há menos de dez minutos, quando o monstro foi avistado saindo do mar e seguindo seu caminho em direção à cidade. Vinte metros de um ser alheio a todos os padrões que a natureza terráquea um dia já planejou. Isso aqui é outra coisa. E isso aqui é o motivo pelo qual Ilmar treinou por seis meses da sua vida. Ele respira fundo novamente e dispara pelo corredor afora, entrando no ritmo de seus cinquenta e tantos colegas. Ainda são vários os que o julgam, mesmo num momento como esse.
O alarme não para. Como numa Disneylândia reversa, as caixas de som mantém o volume da sirene da base o mesmo em toda a sua extensão. Não há um ponto de silêncio ou de descanso nessa hora. Todos estão em função de um objetivo em comum. As peças precisam se encaixar do jeito certo, do jeito que o treino indicou, para que a arma funcione como previsto. O centro da base subterrânea. A razão de tudo. Os investimentos bilionários (inflados e possivelmente superfaturados, mas que ninguém nunca se deu ao trabalho de investigar). O corpo metálico que assoma na cabine de lançamento, envolto por pequenos trabalhadores que fazem os últimos ajustes. A perfeição necessária para que a armadura em formato humanoide cumpra sua função. Ilmar só o admira de longe, como alguém que vê uma Ferrari numa vitrine. “Tão perto e tão longe”, ele pensa. Até que seu superior berra no seu ouvido e ele volta à sua função: carregar cabos.
O alarme lhe apressa. O cabo se estende por quase cem metros, e tem a espessura de uma melancia. Ilmar e seus colegas carregam o cabo pela sala de lançamento, com a corrida marchada em sincronia exata. Os cabos atravessam a sala até chegar, quase como numa dança, até a base da cabine de lançamento. Ao final dos cabos, uma série de tomadas elétricas de tamanhos variados se encaixam num tipo de entrada que se liga à base. Encaixe certeiro, sem titubeios. Ilmar nunca entendeu muito bem qual a função dos cabos, mas lá no meio da sala ele sente que cumpriu sua função. Bem nesse momento, ele sente um tapinha no braço. Quando se dá conta, percebe um uniforme vermelho que corre pela sala dando tapinhas de agradecimento em vários dos colegas de Ilmar.
É Yong. A estrela da base – depois da máquina que ele pilota. O jovem que está no lugar em que Ilmar sempre almejou ocupar. Uma salva de palmas se espalha pela sala de lançamento enquanto Yong sobe a escada de metal que foi colocada para ele. No topo da escada, Yong ergue um abraço num agradecimento ligeiro porque não há tempo para ser muito mais educado que isso. Ele encaixa seu capacete, o que gera algumas palmas e comemorações extras vindas do solo. Então entra numa cabine que fica no equivalente ao tórax da armadura humanoide, encaixa seu corpo no cockpit, aperta num botão, faz uma nova saudação a seus colegas e a cabine se fecha. Ilmar se emociona com a visão e com a sensação de estar junto com Yong. Ele fez parte daquilo também.
— Senhoras e senhores — diz uma voz nos alto-falantes, — lançamento dentro de dois minutos. Evacuem a área de lançamento.
Ilmar e seus colegas correm como formigas para longe da área pintada de vermelho no chão metálico da sala. Os cabos ligados à base de lançamento emitem um ruído elétrico, uma sinfonia de suspense. Só resta a Ilmar observar. Seus colegas fazem os últimos ajustes enquanto a escada é colocada num canto. Tudo parece estar de acordo. As luzes indicam o funcionamento perfeito de tudo, como esperado. A voz de Yong, abafada, anuncia:
— Base, protocolo finalizado. Destravando base de lançamento.
Ganchos de dois metros de largura desprendem os pés da armadura, soltando um vapor. Ilmar registra tudo com seus olhos hábeis. Já tinha visto aquilo tudo funcionando, mas não de verdade.
— Iniciando processo de lançamento — avisa Yong.
Uma comporta se abre no teto da sala. A luz entra como um facho de esperança, machucando os olhos de Ilmar.
— Lançando Dragardian. — Yong faz uma pausa dramática. — Senhores, é hora de chutar umas bundas.
A plateia vai à loucura. Ilmar grita de alegria. O Dragardian vai entrar em ação.
Em três, dois, um: a plataforma da base de lançamento arremessa o monstro de metal para cima como um estilingue. Mais comemorações. A algumas dezenas de metros de altura acima do chão, Yong aciona os foguetes propulsores nas costas do Dragardian, fazendo-o voar e girar pelo céu como um jato. A voz na sala de controle confirma: tudo como planejado. O lançamento foi um sucesso. Ilmar joga os braços para cima e grita como se seu time tivesse feito um gol. Seus colegas se abraçam à sua volta. Ninguém o abraça. Ele bate umas palminhas.
Todos miram sua atenção para os telões na sala, que trazem imagens que estão sendo transmitidas do cockpit do Dragardian. É como se todos ali estivessem sentados na cadeira ao lado de Yong. Os prédios já parcialmente evacuados são borrões na tela. Menos de cinco minutos depois, Yong desacelera o Dragardian e põe seus dois pés no chão.
Eles agora estão diante do ser que invadiu a cidade. Ele é maior que o Dragardian, sua pele é gosmenta, aparentemente escorregadia. Tem mais olhos do que deveria, espalhados pelo corpo inteiro, e todos eles olham diretamente para a câmera no cockpit. Ilmar sente um desconforto, como se o monstro estivesse lhe julgando. Os biólogos da base não tem informação nenhuma sobre este ser, ele é completamente diferente dos outros que já apareceram. Há um ferrão saindo das costas dele.
Um único golpe. O ferrão atravessa a barriga do Dragardian. A tela chia e depois fica preta, apresentando apenas um aviso: sinal perdido.
Ninguém sabe como reagir. Essa não estava nos planos.
Na sala de controle, tentam entrar em contato com Yong mas não há resposta. Aos poucos, o desespero vai tomando forma entre os colegas de Ilmar. Mas não nele. Ele tomou um susto sim, mas sabe que ainda há o que ser feito.
— Calma, galera — ele grita. — Tem um segundo Dragardian na base, pra situações como essa.
— Beleza, mas o Yong não tá respondendo — diz um colega semicalvo. — Quem vai pilotar? Você?
— Sim.