Kagemusha é um Kurosawa menor? Se for, ainda é Kurosawa, então é melhor do que filmografias inteiras por aí. A habilidade no enquadramento tá ali, mas diferente: aqui Kurosawa parece buscar uma teatralidade, os personagens são filmados de frente, com uma certa distância, de corpo inteiro meio que num palco, ou então com lentes tele que permitem filmar muito de longe algumas reações dos atores. Tem algo mais “solto” aqui em alguns momentos, o que não deixa de ser interessante. Tem até algo de comédia meio solta assim. Isso vem muito da história: ladrão mequetrefe se parece muito com o senhor feudal local. Quando o senhor morre, os generais botam o ladrão no lugar do outro pra que ninguém saiba da morte dele, por três anos. Aí é confusão pra todo lado e um pernas pra que te quero.
É a deixa pro Kurosawa falar da decadência da realeza e dos poderes estabelecidos, um tema que tem a ver com Ran também, que eu comentei aqui outro dia. As intrigas palacianas e como elas avacalham as vidas dos mais fodidas. O sósia só se fode, é a única pessoa que parece se importar com algo mais além do que a guerra e o poder. Os generais, as pessoas que realmente controlam o governo, muito pouco se importam. Tem uma sequência de planos bem no final do filme que parece retratar isso. Ao mesmo tempo, tem algo sobre o desejo pelo poder também na forma do ladrão, e ele se perdendo na bagunça de identidades na frágil cabecinha dele.
A água entra como símbolo de morte e da própria decadência - o sonho, o mar no final, a chuva quando o mensageiro vem falar do ataque que o filho do Shingen vai meter.
Existe algo de muito fascinante em filmes de 3 horas ou mais: mesmo quando a história não se explica muito, ou é lenta de alguma forma, parece que ela vai me sugando pra dentro dela e chega uma hora que eu só vou me deixando me levar, nem parece que tanto tempo se passou. Parece que eu só me jogo esperando o que o filme vai me apresentar em seguida. Às vezes até em filmes não tão bons assim. Mas é uma viagem completamente diferente. É um espaço de tempo muito específico. Sei lá.
No momento, tem no Disney+ e no Looke. Só que a versão do Disney+ é a versão internacional, com 20 minutos a menos, então evite. A versão do Looke não parece tão boa assim, mas pode ser algo do próprio streaming, tem uns pixels meio esquisitos, mas dá pra ver de boa. Na dúvida, o Acervo do Drive tem a filmografia completa do Kurosawa.
Saiu faz um tempo mas eu só ouvi agora o álbum da Cindy Lee, que é o nome de drag do canadense Patrick Flegel. O lance é que ele não saiu no Spotify, só no Youtube e no Bandcamp, e o site oficial é no Geocities (que eu nem sabia que ainda existia, quanto mais que tem um plano gratuito). É um pop simples, quase tosco, a la anos 60, lembra muito um Velvet Underground, soa como se tivesse sido gravado num porão úmido de algum prédio de Nova York. São 32 músicas ao longo de duas horas de duração, e tem várias pérolas ali no meio.
Jazz-fusion indiano dos anos 70 feito pra dar nó na cabeça de geral: esse álbum do Louis Bank’s Sangam
Eu acho que a gente precisa é de mais representações de futuros possíveis na arte frente às distopias que o capitalismo tardio nos enfia goela abaixo.
Sendo mais específico, precisamos de mais gente vestida de robô fingindo que toca música razoavelmente esquisita ao vivo. Em 1962 a gente tinha os Spotnicks
Os anos 70, claro, tiveram a space disco. Tinha o Droids por exemplo…
(aqui tem outro clipe da música, ainda mais lisérgico)
… e o Space, em sua fúria percussiva
Correndo por fora, tinha a Dee D. Jackson, no limite das minhas definições aqui:
Tudo isso tinha a ver mais com a ascensão da disco music e do uso cada vez maior de sintetizador (um instrumento que claramente veio do futuro), coisa que basicamente se iniciou quando o Giorgio Moroder e a Donna Summer lançaram o hit eterno I Feel Love. E também, com o sucesso de Star Wars.
Obviamente depois a gente vai desembocar no Daft Punk, eles mesmos se apropriando de muitas ideias dessa disco music da época.
(Também é interessante pensar que esse som surge nos anos 70, e nos anos 80 a sensação é de que o futuro meio que “já chegou” e as coisas ficam mais palpáveis no imaginário geral: é onde surge o cyberpunk com sua visão pessimista do futuro e também, numa celebração do sucesso da tecnologia e do sintetizador, a new wave e o city pop. Mas aí é outra pira)
E por falar em robô: e a série nova de Gundam que vai ser escrita pelo Hideaki Anno e dirigida pelo cara de FLCL? E tem esse nome ridículo? Tô dentro.