Não Sei Desenhar ◌159 - 01/11/24
10 horas da manhã e já acabou o café. Aí não tem condições
Bom esse vídeo do Nerdwriter sobre La Jetée (também conhecido como “o curtametragem que usa só fotografias e no qual Os Doze Macacos foi baseado”). E se não vistes, aproveita que tem no Youtube legendado.
Numa edição de maio dessa newsletter, eu falei como tava voltando a produzir um curta depois de sei lá quanto tempo, na época estávamos começando o processo de ensaio pra filmar. Postei o trailer aqui recentemente, talvez vocês lembrem. E ontem foi a última exibição oficial de lançamento do bicho. É curiosa a sensação de estar dando um passo desses - ao mesmo tempo em que o “grosso” parece que já passou, agora o filme tá pronto pras pessoas verem e reagirem e isso gera novas questões. Todo o trabalho que a gente teve de pré, produção e pós, não foi pouco: foi um projeto com um escopo muito maior do que deveria, mas que tira sua força justamente disso. Do coletivo, porque esse filme foi feito a muitas mãos, a maioria delas todas de Urussanga/SC mesmo. Ainda assim, eu consigo ver a minha assinatura ali, mesmo que como co-diretor. Isso que é bem loco.
Eu não sei até que ponto eu me sinto aliviado de ver o negócio pronto e ganhando vida, a sensação é de que o trabalho ainda não terminou - agora é tentar festivais e tal, tentar mostrar o filme pro máximo de gente possível (alô criciumenses da newsletter: em breve sessões na cidade!!!), mesmo sabendo das limitações dele e tentando lidar com elas. Elas inevitavelmente vão estar ali, e faz parte da questão de ver a própria assinatura no negócio.
A minha ideia original era dissecar ao longo das edições da newsletter um pouco do processo de filmagem e etc da coisa toda mas o cansaço generalizado impediu essa ideia de andar, então fica aí o registro de que foi muito difícil & cansativo!!!! Acreditem. Mas valeu a pena.
Pra finalizar: eis o pôster, no qual eu meti altos bedelhos, mas cuja ideia e colagem manual são da Lara Claumann Fornasa:
(Curioso notar que esse projeto tá terminando na mesma semana em que tá saindo o último episódio da Dungeon Espiral também, outro projeto muito grande pros meus humildes padrões. Tirem algum significado disso. Ciclos se fechando, aquela coisa toda? O que vem por aí depois disso? Eu sei lá porra, me deixa descansar)
muita gente provavelmente já tá ligada mas: álbum novo do Tyler The Creator tá bem bom, algumas das melhores bases da carreira dele (e alguns hits fortes também)
só fui ouvir recentemente um álbum lendário do jazz-funk, o Step Into Tomorrow do Donald Byrd. Brabíssimo
NO EPISÓDIO ANTERIOR: olha, se tu chegou até aqui sem ter lido nada e sem saber o que aconteceu, vamos ter um problema. Só posso sugerir que leia todos os episódios anteriores. É o último episódio galera, bora se ligar?
s03e06: você PRECISA dessa espada
Transcrito do caderno de Valdir:
Dia 98 na Terceira Área
Quando a minha mãe me ensinou o que era poesia, ela falou que ajudava a gente a achar beleza nas coisas, por que a rima mostrava a harmonia nos pensamentos e nas coisas que a gente vê. Aí eu pensei OK.
Só depois de muito tempo que eu fui entender mesmo o que ela queria dizer. Eu encontrei essa beleza na Brenda. Eu só não sabia disso na época.
Uma vez numa taverna eu ouvi uma música que dizia “foi preciso perder pra aprender a valorizar” e aí eu chorei quando eu ouvi. Por que eu entendi o que ele quis dizer. Não tinha rima nessa parte mas eu acho que vi poesia nessa música nessa hora. Pensando agora.
Isso aconteceu quando eu perdi a Brenda e quando eu morri também. No caso, o que eu perdi foi a vida. Acho até que quando eu vi a Brenda com o Moacir eu morri também. Mas teve uma vez que eu morri de verdade. Não foi legal.
Mas aí depois de atravessar o Deserto da Conceituação (lembrar de procurar o que é “conceituação” no dicionário) eu encontrei com a Brenda de novo. Lembro como se fosse ontem. Foi anteontem.
Não sei quem tomou o susto maior. Ela estava na varanda, tomando um chá, como sempre fazia. Eu estava caminhando até ela, careca e de barba, o contrário do que ela estava acostumada. Ela ainda estava bonita, mas não sei se foi a minha cabeça pela metade ou a situação. O que tinha de diferente nela já não estava mais lá. Que nem em mim, acho.
– Valdir – ela disse. No caso, pra mim.
– Oi, Brenda – eu disse, tentando sorrir. Meio que não consegui.
– Eu virei a Guardiã daqui dessa área. F-faz pouco tempo.
– Que legal. Parece legal aqui.
– É bem tranquilo, dizem.
Ficou um silêncio esquisito.
– Você quer passar? Quer descansar um pouco?
– Descansar. Parece uma boa.
Eu não aguentava mais andar. Brenda pegou uma cadeira lá de dentro e colocou na varanda. Sentei, fazendo um gemido. Minhas pernas e minhas costas doíam muito. Então não doíam mais tanto. Brenda me ofereceu água, eu aceitei.
– Você sabe que aqui tem a primeira saída pra fora da Dungeon, né? – me disse a Brenda. – Depois tem a quarta área, mas dizem que ela é ainda mais estranha que a terceira. Já sabe pra onde vai?
– Já. Me decidi.
Tomei um gole de água. Era refrescante. Ninguém falou mais nada. Foi esquisito. Até que eu senti algo que me fez soltar as palavras.
– Brenda, me desculpa.
Ela olhou pra mim, depois olhou pro chá. Não entendi o que tinha de tão interessante na caneca. Devia ser um chá muito bonito.
– Desculpa. Por tudo que eu te fiz passar. Eu… não entendia nada de nada. – Ao contrário de hoje em dia.
Me deu vontade de chorar. Os olhos da Brenda ficaram vermelhos também. Ela fez que sim com a cabeça.
– Eu também preciso pedir desculpa, acho – ela disse. – Por não te compreender. Eu passei por muita coisa. Não quis entender o que acontecia.
– Não precisa pedir desculpa. Não tem porquê.
Ficamos em silêncio mais um pouco. Só ouvi o ruído do vento. Ela limpou o rosto.
– Isso foi bom – eu disse.
– Foi. Mas… você… a gente… você quer voltar?
Eu demorei pra responder. Não por medo ou receio ou nervosismo. A resposta veio como se uma pedra caísse na minha cabeça e me fizesse ver a realidade. Uma pedra que eu mesmo joguei.
– Não.
Ela deu um sorriso aliviado.
– Ufa! Eu também não. Eu tô com outras prioridades agora, sabe?
– Sim. Entendo. Eu também.
Eu senti alívio também. As coisas mudaram.
A gente se abraçou. Foi bom. Fazia tempo que eu não abraçava alguém. Foi um abraço de amigos. Acho que nós dois estávamos precisando disso. Choramos mais um pouco. Ela quase quebrou minhas costelas mas eu não falei nada.
– Obrigada – ela disse. Se fosse eu falando, seria “obrigado”. Lembro de ter aprendido isso.
– Eu que agradeço.
Eu olhei pra ela. O rosto que eu conhecia. Mas diferente. Que nem eu. Era bom, de outra forma. Não sei explicar. A poesia estava diferente.
Diário, você não vai acreditar no que aconteceu depois, mas foi verdade, eu juro. Eu sei que vai parecer absurdo, mas foi isso mesmo. Enquanto ficávamos em silêncio mais um pouco, eu ouvi barulho de palmas. Primeiro achei que fosse algo batendo dentro da casa, mas depois olhei pra fora. Quem estava batendo palmas era Herivelto.
Ele estava diferente. Estava com uma armadura pintada de ouro, só que toda suja. Ele também estava sujo, e cansado. Tinha vários bottons presos na armadura. Já não usava mais a blusa que eu estava acostumado. Só o gorro.
– Que bonito o casalzinho – ele disse. – Bonito ver esse reencontro. Parece que tudo deu certo pra vocês, então. Todos alcançaram seus objetivos. Muito que bem!
Achei esquisita a forma como ele falou. Fiquei em alerta. Ele largou sua mochila no chão. Parecia pesada.
– Mas acho que não é o suficiente. Se vocês quiserem seguir em frente mesmo… – Ele meteu a mão na mochila e tirou um saco cheio de coisas. –… vocês vão precisar de produtos do Khepresh! Já ouviram falar no Khepresh?
A Brenda me olhou confusa. Tentei me aproximar de Herivelto.
– Herivelto, olha… a gente…
– O Khepresh tem o melhor em equipamentos pra quem quer explorar a Dungeon Espiral! Vejam eu, por exemplo. Cheguei até aqui usando só equipamentos do Khepresh! Olha essa armadura!
Ele girou, mostrando a armadura. Estava amassada e suja.
– Olha aqui essa espada! – Ele tirou uma espada rachada e velha da bainha. Apontou ela pra mim enquanto eu chegava mais perto. – OLHA AQUI ESSA ESPADA, Valdir! Você PRECISA dessa espada.
– Herivelto, eu não tenho interesse em…
– Você tem sim! Você quer comprar esse kit de equipamentos sim. Você me deve isso! Compre de mim, seu filho da puta.
– Herivelto, acho que a sua estratégia de vendas não vai…
– O que você sabe sobre estratégia de venda, seu burro? Hein?! Você é só um bárbaro burro. – Essas palavras não me afetaram. – Compre essa espada! Vamos, compre! Você precisa proteger a sua namoradinha. Me faça subir de nível no Khepresh. Me dê seu dinheiro!
Acho que ele ficou esperando que eu fizesse algo. Ficou apontando a espada pra mim, eu só mostrei as mãos. A espada tremia na mão dele, acho que era pesada demais.
– Eu não vou comprar, Herivelto.
– Então eu vou te matar. É isso que você quer?
– Não.
– Eu acho que é! Se prepare!
O Herivelto segurou a espada com as duas mãos e tentou me atacar. Eu desviei, porque o meu corpo é muito veloz, não porque o ataque foi lento. Depois ele deu mais uns golpes, cansado. Eu só fui andando pra trás enquanto ele me atacava.
Parou, e começou a arfar. Se apoiou na espada. Olhou para Brenda.
– Você, então. Você quer uma espada do Khepresh.
– Não, obrigada.
– Herivelto, chega. Ninguém quer nada disso aqui.
Ele virou a cabeça pra mim e me olhou. Parecia que estava fazendo força para usar os olhos. Eles estavam vermelhos. Ele estava desesperado. Quase a ponto de explodir. Eu quis falar algo para acalmá-lo, mas não soube o quê. Talvez precisasse de um abraço também. Mas não parecia certo. Olhei pra ele e ele estava diferente também. Ainda que no fundo parecesse o mesmo. Só que pior.
– Pois muito que bem! Você é a Guardiã dessa área?
– A saída é pela cerca ali do lado. – Brenda apontou pra um portão de madeira do lado da casa.
– Ótimo! Depois não venham reclamar. – Ele juntou sua mochila. – Se precisarem de mim, vou estar na próxima área da Dungeon, tornando o Khepresh cada vez maior. Ao contrário de vocês!
Eu queria dizer algo mas não consegui. Só fiquei perplexo. (Lembrar de conferir no dicionário o significado de “perplexo”) Herivelto saiu pelo portão e só seguiu em frente, pisando forte. Depois voltou e jogou um cartão de visitas no chão.
– Se mudarem de ideia, é só me ligar.
O cartão dizia: “Herivelto de Almeida - Aventureiro Khepresh”, e do lado ele tinha riscado a caneta “Nível Ouro 1”. Tinha um número de telefone. Eu guardei o cartão.
Eu e Brenda conversamos mais um pouco depois. Contamos algumas das coisas que passamos na Dungeon. Rimos um pouco, tomamos café. Foi bom. De um jeito diferente. Não sei se já falei isso. Mas então senti que era o momento de partir. Nós nos abraçamos de novo.
Ela me levou pra um paiol atrás da casa. Ali já não nevava mais, e tinha umas plantações. Ela me de desejou boa sorte, e eu também pra ela. Abri a porta de madeira do paiol. Ali dentro, era uma salinha velha entulhada de coisa. No final dela, tinha outra porta. Fechei a porta atrás de mim e andei até a outra porta desviando das coisas. A poeira me incomodou um pouco.
Abri a outra porta. A luz do dia me deu um susto. Até que meus olhos se acostumaram.
Um totem na frente da saída traz uma placa que diz “O que achou da Dungeon Espiral? Avalie sua experiência” e abaixo dez botões. Em seguida, um homem num quiosque tenta vender souvenires da Dungeon. Valdir nega.
終
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