Não Sei Desenhar Ʞ155 - 04/10/24
Leia a trilogia A Terra Partida da N.K. Jemisin você também! Vamos ser amigos
Difícil ter algo a acrescentar em relação a qualquer filme do Hitchcock, mas o lance é que eu vi Interlúdio (Notorious, 1946) e a esquisitice dele fica rondando a minha mente ainda. É um romance de espionagem. Começa por aí. Os dois gêneros estão intrinsecamente ligados aqui, um não funciona sem o outro. As relações entre os personagens vagueiam entre o amor sincero e o mero interesse profissional, em níveis variados.
É um filme de espionagem “pedestre”, no sentido de que as coisas não são particularmente espetaculosas - o próprio Hitchcock fala sobre isso: nenhuma arma aparece no filme, mantendo as coisas num nível quase trivial. O assassinato é algo que alguém não envolvido com espionagem faria pra não levantar suspeitas.
É um filme de romance em que o trabalho se interpõe no meio do casal, apesar de surgir a partir desse trabalho. Ninguém é particularmente idealizado, todos estão no meio desse jogo sujo do mundo da espionagem e ninguém é confiável.
Eu não consigo não destacar o famigerado plano da protagonista empunhando uma chave no meio de uma festa
Tá maluco. Aqui o diretor de fotografia John Bailey fala sobre a dificuldade de filmar essa cena com o equipamento da época
Destaque também pros penteados cada vez mais rococó.
Tem no Looke mas tem no Youtube também.
Belo quadrinho de comédia recém-descoberto: Great F’ing School, do Cefraga. É tipo anime com Bob Esponja e além.
Só li o primeiro capítulo mas claramente tem futuro.
Saiu álbum novo do Sault, aquela banda de soul/funk/afrobeat/música clássica (!?) e misturas afins que ninguém sabe quem faz parte de fato. Só alguns dos álbuns deles tão no Spotify e esse novo foi lançado oficialmente só como um único .wav no WeTransfer. Teve um álbum que esteve no ar por algum tempo e depois foi deletado. Os caras chegaram a fazer um show em Londres mas parece que nem assim descobriram nada sobre a banda.
é disso que eu tô falando, porra
E teve essa banda inglesa perdida dos anos 80 chamada Empire. Tem uma história mais completa numa reportagem do Guardian, mas basicamente: o guitarrista do Generation X (banda punk de onde surgiu o Billy Idol), Bob Andrews, depois de sair da banda, mete um único álbum com seu trio novo pro qual ninguém dá muita bola. Só que o álbum vai parar nas mãos de caras da cena de Washington e inadvertidamente vai influenciar no som de bandas de post-hardcore como Fugazi, sem nem saber. O som em si é basicamente um instrumental que lembra Fugazi com vocais a la Stone Roses.
NO EPISÓDIO ANTERIOR: Iussuque ganha novas pernas! Olha que beleza. Herivelto ganha mais um empecilho na sua busca por níveis dentro do Khepresh! Brenda ganha um flashback. E eu não ganhei nada. Se quiser que eu ganhe alguma coisa, mande um pix pra chave danilodoclee@gmail.com. E é só isso né? Não tem mais nenhum outro personagem na Dungeon, certo? Que bom que concordamos!
s03e02: as costelas no chão fazendo “poc”
Não há nada.
Só escuridão. Não há sensações, sons, cheiros. Na verdade, nem escuridão existe propriamente. Só a não-sensação, o não-sentir. Uma clausura na inexistência. Não há sonhos nesse sono. Não há nem sequer o sono.
Até que há.
Uma pulsação.
Eletricidade parece disparar ao longo do corpo. Pequenos espasmos de possibilidades que se soltam e se aglutinam. Ao redor do peito. Sons parecem surgir, disformes. O toque de algo. A nuca está apoiada em algum lugar. Os dedos das mãos sobre metal. O metal está gelado. Sensações acordando. Um aroma limpo e ácido acena para as narinas. Há um gosto na língua. Existe uma língua. Um resquício de mel, orégano. Memórias. As coisas existem e parecem querer começar a fazer sentido. A visão aparece vermelha e amarela. Os olhos estão fechados sob alguma luz. A luz é quente. As sensações saltitam cada vez com mais pressa. Os músculos rígidos trincam sob a pele. Há um esforço. Os olhos se abrem. Imagens desfocadas aos poucos ganham nitidez. Uma mexida no pescoço para a direita, depois para esquerda. Centímetros. Centímetros de vida voltando. Um rosto. Não dá pra saber de quem. Uma luz direta arranha o olhar. Aos poucos, a visão se acostuma e o rosto começa a tomar forma. Um homem de cabelo desgrenhado e longo, estrábico mas de óculos, com o rosto magro mas enrugado. Ele abre a boca pela metade, em algo que o cérebro define vagamente como um “sorriso” ou algo que se assemelhe.
— Acordou — ele diz, a voz rouca.
Um outro rosto surge do outro lado. Desta vez, um rosto conhecido, que traz segurança.
— Até que enfim, caralho — diz Dona Isolete.
Valdir tenta mexer a cabeça e o corpo, mas já é demais. Ele tenta balbuciar:
— O… o q…
— Valdir, vai com calma, querido. — Dona Isolete sorri aliviada. — Seu corpo ainda está se recuperando.
Ele olha em volta com alguma dificuldade, tentando entender onde está. Paredes de metal, um pé-direito muito alto. Balcões também de metal, instrumentos cirúrgicos.
— C-como… — Valdir começa a lembrar. O torneio de luta. Os golpes que sofreu. A luta que perdeu.
— Foi o Moacir.
Valdir abre a boca mas nenhum som sai. O quê? Quem? Ah, o ex da ex. Mas como? Por quê? Ele o derrotou na luta, não foi? Ele o matou. Mas pera… como?
— Ele se arrependeu do que fez com você logo em seguida. Aí ele fez você beber a Maravilha Curativa dele, na esperança de te salvar. Parece que deu certo.
Valdir arregala os olhos. Seu corpo aos poucos vai relembrando outras sensações e sentimentos. Mas algo ainda…
— Onde…?
— Ah, a gente passou pra outra área da Dungeon.
A Dungeon.
— O Moacir e eu te trouxemos direto aqui pro Laboratório Celeste. O Doutor Roger também ajudou a te trazer de volta.
— Doutor…?
Valdir olha pra além da cama de metal e só agora dá de cara com uma janela enorme, de vidro arredondado, quase quatro metros de altura. Do lado de fora, apenas nuvens e o céu, nenhum sinal de chão. Uma gaivota passa ao longe, tranquilamente, quase sem mover as asas, flanando pelo azul. Então é explodida por um tiro de espingarda.
O tiro veio da janela, onde o homem de cabelo desgrenhado estava apontando a arma. Ele olha para Valdir e dá um tchauzinho simpático.
— Muito prazer, Doutor Roger.
Valdir olha para ele. Com esforço, levanta a mão e dá um tchauzinho de volta.
* * *
À noite, Dona Isolete lhe traz um espelho. Numa cadeira de rodas, de frente para o janelão do Laboratório Celeste, Valdir se vê.
— Aparentemente, pelo que o Doutor Roger disse, a Maravilha Curativa te transformou num meio-zumbi. Com todo respeito.
Não é como se ele só tivesse envelhecido. Sua pele está ligeiramente cinza-esverdeada, enrugada, quase apodrecida. Chumaços de seu longo cabelo sumiram. A barba está por fazer. Seus olhos parecem mais fundos, o crânio proeminente, invasivo. Dói segurar o espelho.
— A sua força vai voltar, Valdir. Mas você vai precisar treinar o seu corpo.
Dona Isolete tira o espelho de sua frente. A janela mostra as nuvens cinzas sob a noite da terceira área da Dungeon Espiral.
— Tem certeza? — A voz de Valdir soa como dois pedaços de madeira roçando um no outro.
— Não. — Dona Isolete demora para responder.
* * *
Valdir não precisa de mais de um dia para voltar a caminhar. Mas na opinião de Dona Isolete, seu cérebro não se recuperou ainda: ele quer sair do Laboratório Celeste e continuar explorando a Dungeon. Valdir diz que vai mostrar pra ela como está forte então brande a espada só pra sentir uma pontada no antebraço e deixar a arma cair.
— Tá tudo bem…
— Valdir, você tem que descansar…
— Eu me sinto ágil ainda, Dona Isolete! Olha só.
Ele tenta sair correndo mas seus joelhos fazem “crec” no meio do caminho. Dá de cara com uma parede e desaba com as costelas no chão fazendo “poc”.
— Valdir, o que foi isso? Por favor, você precisa…
— Eu tô bem! Não se preocupa, tá tuuuu… — Ele se levanta mancando. O mundo gira e estrelas adornam sua vista. — Meu corpo tá perfeito. Minha vista tá ótima.
— Pelo amor de Deus, Valdir, descansa um pouco…
— Dona Isolete.
Ela olha profundamente nos olhos de Valdir.
— Eu vou dar uma estrelinha.
Dona Isolete, Doutor Roger e mais duas enfermeiras agarram Valdir no meio do movimento e o sedam.
Valdir acorda e dá de cara com Brenda. Tem algo nela, na presença nela. A expressão é a mesma da última vez em que ele a viu. Mas tem algo de errado. Brenda estende a mão para alcançar o rosto de Valdir mas um segundo depois ela está a dez metros de distância. Mais um segundo e ela está no horizonte. Valdir tenta alcançá-la mas não dá mais tempo. Sua cama acelera parada. Herivelto passa por ele, montado numa pirâmide, rindo histericamente. Dona Isolete aparece do chão mas se afasta dele também, rolando. Então Valdir vê a si mesmo. Não o rosto que ele viu no espelho há pouco. O Valdir que entrou na Dungeon Espiral. Inteiro, forte, resiliente. Esse Valdir apodrece rapidamente, sua pele vira cinzas, seu esqueleto se desfaz, os olhos rolam das órbitas. Só resta um crânio com fiapos de cabelo e um caderno. Valdir acorda de novo. Arfando, suor escorrendo. Desta vez, está num quarto escuro do Laboratório. Dona Isolete ronca ao seu lado, seu livro na mão.
Uma mesa de metal prateada ameaça Valdir com um reflexo disforme de seu rosto.
* * *
É mais ou menos quando começam os prédios flutuantes que surge um pensamento, entre os poucos que costumam aparecer na mente de Valdir. Ele se dá conta do tempo em que está dentro da Dungeon Espiral e de tudo que aconteceu com ele. Tudo que se passou, as pessoas que conheceu, as pessoas que se afastaram dele. Tudo que ele perdeu, incluindo a própria vida. Um barulho ensurdecedor lhe dá um tapa mental: os canos de descarga de cinco motos que começam a rondar.
Valdir e Dona Isolete caminham na velocidade em que conseguem, enquanto duas das motos se aproximam deles, levantando a poeira do deserto acinzentado. Os dois motoqueiros trazem no rosto uma maquiagem tosca de palhaço e sorrisos tortos. Não ameaçam diretamente os visitantes, mas demarcam o território. Os prédios pairam no ar, tratando as leis da física como se fossem uma mera sugestão. Edifícios gigantescos, antes presos ao chão, apontam para todos os lados - às vezes para mais de um ao mesmo tempo. Alguns se retorcem em si mesmos, outros formam ângulos de noventa graus. Ainda há vários fincados no chão, como se tivessem sido atirados com muita força.
Pessoas moram em vários destes edifícios. A densidade populacional surpreende Dona Isolete, que não esperava tanta gente nesta profundidade desértica da Dungeon. Todos observam os visitantes com cautela ou com desprezo. Os motoqueiros seguem Valdir e Dona Isolete cidade adentro, vigiando-os de longe, claramente prontos para qualquer coisa.
O ponto central da cidade parece ser um elemento que pode ser visto da entrada. Um jovem. De certa forma. Há algumas feições de jovem ali em algum lugar, é visível, mas no geral ele está mais para uma bola de carne de cinco metros de altura e muitos outros de diâmetro. Sua pele escorre sobre si mesma, gordurosa, em camadas às vezes mais roxas, às vezes mais rosadas, entremeadas pelas veias grossas como raízes aqui e ali. Em dois pontos há protuberâncias em cujas pontas há outras cinco pontinhas, formando portanto dois braços, se o significado da palavra “braço” resolvesse se aposentar por invalidez. No topo, há uma cabeça, do tamanho de uma cama king size. Alguns tufos de cabelo nascem aleatórios. É impossível de ver mas, debaixo de sua bunda, está seu trono de mármore branco. O nome do jovem é Tetê.
Dona Isolete lhe explica que ela e seu amigo só estão ali para catalogar informações, saber mais sobre os variados cantos daquela área da Dungeon. Não vão passar muito tempo ali e só querem conversar, conhecer o local. Tetê lhes olha com olhos que saltam da carne quase que de forma independente.
— Tá bem — ele diz, a voz desafinada da puberdade. — Fiquem aí quanto tempo precisarem. Mas meus amigos — ele tenta apontar com os dedinhos — vão estar de olho em vocês.
— Pode deixar, Vossa Majestade.
Dona Isolete agradece com uma mesura e vai saindo mas Valdir levanta a mão para fazer uma pergunta.
— Vocês… tem cabeleireiro aqui?
A máquina tosa o cabelo de Valdir e ele vê os tufos caindo sobre seu peito. Sente que são pedaços de si mesmo que ele está deixando cair, partes dele que não lhe pertencem mais. O passado lhe deixando e abrindo espaço para algo que ele não faz ideia do que seja. Valdir sente medo e insegurança. Parece que nada mais é como era até pouco tempo atrás. Pede pra fazer o recorte da barba bem certinho no maxilar.
つづく
"Eu vou dar uma estrelinha." 😂😂