Fique ligado você aí: muito em breve começa a terceira e última temporada de Dungeon Espiral e você não vai querer perder essa emoção!!!!!! Aproveite para ler ou reler todos os episódios já lançados:
Depois não diga que eu não avisei
e agora, uma novidade exclusiva da newsletter Não Sei Desenhar: resenha de ronco
Recentemente eu precisei, por questões de trabalho, dividir um quarto de duas camas de solteiro com outro cara. Eu fui avisado: “vai dormir antes de mim pra poder ter um pouco de sono”. Eu disse “hahah blz” e segui a sugestão porque tava cansado mesmo. Me deram um par de protetores auriculares, esses de espuma. Não dormi particularmente bem, mas a cama do local estava muito confortável. Ar condicionado gelado e cobertorzinho, coisa fina.
Em algum momento da noite, o gigante acordou. Ou melhor, dormiu.
Eu já dividi quarto algumas vezes na vida. Já tive problemas de dormir com gente roncando que nem uns tratores. Eu mesmo já fui a pessoa que roncava. A vida é assim. Às vezes você ronca, às vezes você é roncado. Who snores the snorer?
Porém isso aqui foi diferente. É um ronco que beira o desesperador. A sonoridade passeia por várias frequências. As ondas de ronco cresciam rapidamente, numa sucessão pouco lógica de respirações. O momento mais alto do ronco surgia com rapidez, dando sustos, e não numa repetição irritante - o que de certa forma dava um tom de normalidade à coisa. A respiração travava com frequência, e é daí que vem o desespero: só pode ser um caso de apneia do sono, porque não é possível. Eu quase temi pela vida do cidadão algumas vezes. Em algum momento aquela respiração ia parar. A urgência de um CPAP parecia questão de vida ou morte. Os protetores auriculares? Não tinham a menor chance. Eles sequer encaixavam na minha orelha. Às sete da manhã, eu não levantei, eu desisti.
Poucas vezes fui acordado por um ronco tão bem orquestrado. Foi quase como assistir a uma cena de Fantasia, da Disney, em formato de problema de respiração. Cheio de suspense, ritmos variados mas com certa constância. Era a natureza agindo ali, em todo seu esplendor. Nota: 9/10 (tirei um ponto porque, apesar de tudo, parece que dormi o “suficiente”, ou algo próximo disso, não passei pelo estágio de ficar com raiva por não conseguir dormir)
Seria O Vício (The Addiction, do Abel Ferrara) o Vampiro: A Máscara - O Filme? Envolve vampirices, drogas, uma estética dark e contemporânea (quase punk-gótica), e as origens do mal no ser humano.
Esse que é o grande lance. A personagem principal é uma doutoranda em filosofia que vira uma vampira, e o vício em sangue se torna algo que a impele a buscar cada vez mais o porquê de a humanidade ser tão violenta. Ela, que virou a violência em forma humana. O filme não tem vergonha nenhuma de colocar essas questões filosóficas inclusive citando com frequência vários filosófos, exibindo seu tema frontalmente e sem muitos rodeios - meio que numa vibe Godard clássico. Essa falta de vergonha é a mesma que faz o Ferrara abraçar o gênero e fazê-lo dar o seu twist próprio nele. O preto e branco do filme parece vir daí, buscando referenciar o expressionismo alemão e filmes noir.
O filme (querendo ou não) embarca um pouco naquela estética droguinagem anos 90, ainda que sem chafurdar nela e bonitizá-la que nem em algum clipe da Fiona Apple, mas o tema das drogas e da AIDS perpassa o filme com força. Se chama “O Vício”, afinal de contas. O Cristopher Walken aparece em uma cena só (spoiler), mas a presença draculesca e esquisita dele parece chamar toda a atenção pra si e tem uma importância pro roteiro também, há uma certa virada nesse ponto.
O filme não é dark por ser dark - existe uma esperança e uma luz no fim do túnel. As imagens de genocídios históricas não estão ali pelo mero choque: elas são o ponto de partida pro rolê todo.
Não dá pra deixar de notar que tem dois atores de Sopranos aqui, a Edie Falco como a amiga da protagonista e uma participação curta mas importante do Michael Imperioli.
eu falei que era muito em breve:
s03e01: metal, sangue e Super Bonder
— Olha, parece que deu certo — diz uma voz rouca e bruxuleante. O paciente consegue ouvi-la sem dificuldade. Seus sentidos parecem começar a voltar, sem pressa.
A dor que lhe havia sido tirada agora volta. De certa forma.
Não há mais pernas, propriamente, onde senti-la. Mas ele a sente, fantasma. No lugar das antigas pernas, decepadas, um par de membros biônicos que ele não faz ideia de como funcionam. Duas estruturas de metal muito complexas que se conectam à parte de cima de seu corpo e a seu cérebro. Um amontoado de pseudo-ossos reluzentes que se entrelaçam formando pseudo-coxas, pseudo-joelhos, pseudo-canelas e pseudo-pés.
Tudo isso para um pseudo-homem, pensa Iussuque.
Quando ele consegue abrir os olhos, dá de cara com seu senpai, Tacachi. Sua expressão de pedra, ainda que encoberta pela sombra projetada por uma lâmpada de sala de cirurgia, não só pode ser vista como pode ser sentida.
— Parece que a sua brincadeira foi um pouco longe demais, Iussuque.
— S-senpai… — As palavras se arrastam pra fora de Iussuque. — O… onde…?
— Laboratório Celeste. De novo.
Iussuque move os olhos e depois rola a cabeça de leve para o lado para ver as gigantes paredes de metal côncavas e os janelões que dão para o céu azul recheado de nuvens fofas. Atrapalhando a visão do cenário, está um homem magro de meia idade, de guarda-pó branco e cabelos longos e desgrenhados. Seus olhos estrábicos lhe observam com alguma ternura por baixo dos óculos-fundo-de-garrafa. Em seu rosto se abre um rasgo que mostra uma fileira de coisas branco-amareladas presas aleatoriamente às suas gengivas, em algo que lembra mais ou menos aquilo que o dicionário chama de “sorriso”. Ele diz:
— Bem-vindo de volta, Iussuque — e sai.
Tacachi espera o homem se afastar para dizer, num tom resignado:
— Essa foi a última vez, Iussuque. Você está oficialmente expulso da Iacusa.
— O q… senp… — A boca de Iussuque se abre mas as palavras não saem.
— Ninguém aguenta mais a sua vingança pessoal, Iussuque. Se quiser continuá-la, vá fazer isso sem os nossos recursos.
A mente de Iussuque não consegue argumentar e sua garganta não consegue dizer nada, num misto de falta de forças com desespero.
— Você pode ficar até amanhã no Laboratório Celeste. Depois disso, é por sua conta. Passar bem.
— M-mas… s-senpai…
Tacachi se afasta da mesa de cirurgia. Iussuque fica sozinho.
Ele sequer teve tempo de entender o que aconteceu. Seu corpo mal está devidamente estabelecido por completo. Ele agora se encontra sem ter o apoio que tinha até então, num corpo que ele mal reconhece, com a mente destroçada pela humilhação, totalmente fora de lugar e desprotegido.
O que vai ser dele agora? Ou melhor: o que ele vai ser agora? Ele já tentou ser da Iacusa, como sempre sonhou. Disfarçou-se de caubói. Perdeu as mãos. Transformou-se em um guerreiro viking. Perdeu as pernas. E agora, que ele praticamente um ciborgue? Talvez a resposta esteja aí. Tornar-se aquilo que ele já é, assumir seu corpo como ele está e torná-lo mais forte exatamente por isso. Se esconder sob uma outra forma novamente, sem que perceba. Mostrar aquilo que ele quer ser, afinal, é mais importante do que Iussuque mostrar quem realmente é. Um pseudo-homem.
Mas ele há de se encontrar em sua nova forma, a forma definitiva, a forma destruída e reconstruída com metal, sangue e Super Bonder.
O responsável por isso tudo? Ele mesmo? Não. Só existe um nome (porque Iussuque não sabe seu sobrenome): Valdir.
A chama da vingança arde com força em seu peito mais uma vez, porém se apaga quando o sedativo bate novamente e ele cai numa aconchegante naninha.
Iussuque está em sono profundo quando um novo paciente chega às pressas no Laboratório Celeste.
🌀
A motinho saltita pelos pedregulhos, gerando fumaça e um barulho igualmente infernais. O banco curto faz o cóccix de Herivelto doer. Mas no horizonte ele já consegue ver. Depois daquele morro cinza. Está chegando.
Está chegando. A cabeça de pedra escura, inerte, parece lhe esperar com sua bocarra aberta. Uma estátua de dezenas de metros de altura, o primeiro posto do Khepresh na terceira área da Dungeon. Ali dentro, ele subirá mais um nível, e sua bunda irá parar de doer. Tudo que Herivelto precisa.
Ele consegue delinear os detalhes: o hedjet que dá o formato trapezoide para a cabeça gigante. A boca-portão solta vapor, o que indica a sauna exclusiva dos Aventureiros Nível Prata 5. Não é o nível dele ainda, mas ele vai chegar lá. Os olhos furiosos e vazios, como que querendo afastar os incautos. Dizem que funciona. Os olhos atraem Herivelto ainda mais. Uma ligeira luz avermelhada sai das pupilas da estátua. Escondem o cassino dos Aventureiros Nível Bronze. Ali Herivelto pode ir.
O desejo faz Herivelto acelerar a motinho e ela urra num tom agudo e irritante.
— ZHATOR LHE DÁ AS BOAS-VINDAS. — A voz retumba, vinda de algum lugar de dentro da cabeça enorme que flutua a centímetros do chão diante de Herivelto. Ela faz seu peitro reverberar a cada palavra. — O QUE BUSCAS?
— Hã, oi! Eu sou Herivelto, sou um Aventureiro Khepresh Nível Bronze 2. Vim para…
— DUVIDO.
— Como?
— DUVIDO.
— Hã, eu posso mostrar minhas credenciais pra…
— MOSTRE SUAS CREDENCIAIS.
Herivelto demora um pouco para puxar um pedaço de papel plastificado junto de seu botton recém-adquirido.
— NÃO CONSIGO VER. JOGUE PARA DENTRO DA BOCA DE ZHATOR.
Herivelto faz uma careta, mas desce da moto e arremessa os objetos para dentro da boca de três metros de altura. Ele erra o botton e precisa correr até ele pra pegar e jogar de novo. O botton acerta o lábio de pedra e cai pra fora. Desajeitadamente ele corre e arremessa o botton pra depois voltar correndo pra motinho.
— NÃO PRECISA SER GROSSO TAMBÉM.
— Desculpe.
O silêncio de Zhator por mais de um minuto faz Herivelto ficar nervoso.
— Então…? Posso entrar?
— AH. VOCÊ QUER ENTRAR.
— Sim.
— E CONHECER AS MARAVILHAS DE ZHATOR.
— S-sim… e recuperar as energias, reabastecer uns produtos, e…
— ZHATOR ANALISA VOCÊ.
— Perdão.
— AS BELEZAS DE ZHATOR NÃO SÃO PARA TODOS.
— E-eu sei…
— A SAUNA DE ZHATOR É MUITO BEM FREQUENTADA. O CASSINO FOI REFORMADO ESSES DIAS. TEM UMA DAQUELAS MÁQUINAS DE PEGAR BICHINHO AGORA. A FESTA DE INAUGURAÇÃO FOI UMA LOUCURA.
— E-eu imagino…
— FIZERAM O MELHOR NEGRONI QUE EU JÁ TOMEI. GOSTAS DE NEGRONI?
— S-sim! — Não.
— ZHATOR PODE GOSTAR DE VOCÊ.
Novamente, o silêncio. Herivelto arfa e sua. Sente que talvez não possa entrar. Zhator não é para todos. Provavelmente não é para ele também. Tudo bem. Há outros lugares para reabastecer nesta área da Dungeon… nenhuma como Zhator.
— ZHATOR PERMITIRÁ QUE VOCÊ ENTRE.
— S-sério? Muito obrigado! — Herivelto sorri aliviado.
— APROVEITE O CASSINO E A CANCHA DE BOCHA. ENTRE NOS OUTROS LUGARES E SOFRERÁ AS CONSEQUÊNCIAS.
— Obrigado, Zhator! Pode deixar.
— NÃO SE ESQUEÇA DE POSTAR UMA SELFIE COM AS HASHTAGS #ZHATOR E #KEPRESHÉLEGAL.
Nas fotos, Herivelto aparece se divertindo muito. Por dentro, nem tanto.
🌀
Já é noite faz tempo quando ele entra na taverna e uma sineta anuncia sua chegada. Ele se sente em casa. Uma das poucas tavernas limpas que sobraram no mundo. O corpo grosso, parrudo atravessa a lanchonete de decoração com temática estadunidense. Fotos de jogadores de futebol americano que ele não conhece mas que com certeza foram muito importantes no passado. Uma foto de uma mansão toma quase a parede do fundo inteira. O homem escolhe uma mesa bem no meio do local, se misturando ao público variado. Deposita sua espada num canto da mesa.
Foi o primeiro da família a chegar. Ligeiramente entediado, começa a olhar um cardápio que oferece músicas para a jukebox. “Ovelha Negra”, da Rita Lee. Boa. Mas não, não hoje. “Meus Vinte e Seis Anos”, do Joelho de Porco. Ele lembra de ouvir Joelho de Porco na juventude. É essa. Clica num par de botões e o riff de guitarra setentista da música começa a soar pelos falantes próximos à mesa.
“O meu pai sempre dizia
Quero ver você doutor”
Sua esposa é a segunda a chegar. Ele lhe entrega o cardápio quando ela senta bem à sua frente.
— A tua filha vai atrasar de novo? — ele pergunta, casualmente.
— A nossa filha talvez atrase um pouco, de novo. — A mulher não tira os olhos azuis do cardápio para responder. — Ela tava escolhendo o vestido. Parece que agora se decidiu.
— Até que enfim. Três meses pra decidir. Vê se o Valdir demorou tanto tempo pra escolher o terno.
A mulher não diz mais nada. Hoje a noite é para se reunir em família e se divertir, não para discutir.
O terceiro a chegar é seu filho mais velho. Parece uma versão mais magra do pai, com barbicha e com o cabelo que o pai já não tem mais. Recebe um cardápio quando se senta à mesa.
A quarta pessoa a chegar não chegou ainda. Ela só se atrasou porque hesitou. Hesitou quando seu pai lhe convidou para jantar hoje com a família porque não sabia se queria olhar na cara dele. Hesitou na escolha do vestido, hesitou antes de dizer “sim” quando seu então namorado lhe pediu em casamento. Seu pai lhe ensinou a ser decidida mas não é como se ela tivesse escolha. Ela simplesmente hesita.
— Falou com o cara da Dungeon? — pergunta o pai.
— Sim — responde o filho. — Ele disse que se eu quiser, começo na segunda-feira. Mas foi só depois de eu dizer que tu tinha me mandado ali.
O pai solta ar pelo nariz, como quem diz “mas claro”.
— O salário é bom, melhor do que aqui fora — diz a mãe.
O cavalo da filha está nervoso e ela está com dificuldade em amarrá-lo, do lado de fora da taverna. Ela tenta acalmá-lo mas é como se ele sentisse o nervosismo dela e ficasse mais agitado ainda. Ela faz um cafuné nele e fala que tá tudo bem, mesmo que ela saiba que não tá tudo bem. Ela só sabe que o futuro é obscuro, ainda mais na sua situação. Mas ela vai tentar porque ela não tem escolha. Por que sua família mandou. Por que é o que ela tem a fazer.
— Eu tava pensando aqui — diz a mãe. — Eu também demorei pra escolher o meu vestido. Tu é que não lembra.
— Hm — faz o pai, olhando o cardápio enquanto come uma onion ring de entrada.
— Eu comecei a pensar nele quando meu pai te escolheu pra gente casar, antes de a gente se conhecer ao vivo.
A filha consegue amarrar o cavalo.
A sineta da taverna anuncia a chegada de alguém.
O pai ergue os olhos do cardápio para ver quem entrou.
“Meu papai vive esperando…”
つづく