Eu nunca tinha tido vontade de voltar e rever uma cena ou um episódio de série logo depois de ver, até o final da terceira temporada de Succession. Foi tipo uma vontade de ver um replay de um gol ou coisa assim.
A fotografia, a iluminação da cena final me remeteu a algo teatral de fato, mais do que nunca na série. E a música nos créditos ainda deu um tom OPERÍSTICO pra coisa toda.
Como se não bastasse, nessa temporada ficou mais latente o quanto ela é boa num nível episódico. Praticamente todos os episódios são fechados em si, ainda que sempre movendo a trama principal, e isso por si só já é um respiro num universo de séries dominado por Marvel e Netflix em que tudo parece ser um longa-metragem enorme dividido em episódios de 45 minutos. E tive a impressão de que mais do que nunca cada episódio se passava todo em um lugar só, aumentando a tensão - o que pode ter sido um efeito da pandemia na produção da série mesmo.
Bom, sem contar que teve esse momento aqui:
Revimos o primeiro Matrix recentemente e… que filme né?
Muito já foi dito sobre ele, é claro, mas eu não via ele fazia uns anos já. Curioso notar como muitos dos elementos dos outros dois filmes já estavam ali de alguma forma: um início de discussão sobre controle x livre-arbítrio, poderes extra-Matrix (quando a Trinity beija o Neo, ele já tá morto. E ela ressuscita ele. E até hoje tem quem reclame que no terceiro filme ele “tem poderes fora da Matrix” como se isso não fosse um dos grandes lances da porra toda).
Uma coisa que eu não lembrava direito era do clima de paranoia do começo do filme. Não saber quem é o Morpheus, qual é a da Trinity, o que é a Matrix, quem são esses homens de preto sequestrando ele e metendo um INSETO ROBÓTICO NO UMBIGO DO MALUCO. E depois aquela sequência de imagens bizarras lindamente anos 90 de quando ele vê o mundo real pela primeira vez, uma parada meio Hellraiser de ficção científica. O couro, os óculos escuros. Como é bonito esse filme, do seu próprio jeito. Imagina como era ver isso tudo pela primeira vez naquela época, que foi quando eu vi (no cinema, aos 14 anos).
Eu também nunca tinha me dado conta de como muitos enquadramentos parecem ser realmente coisa de anime, pra além daquela cena do bullet time. A cena dele sendo perseguido dentro do escritório por algum motivo me remeteu a isso, pelo menos. Mistérios.
De qualquer maneira, foi bom saber que o filme ainda é tão bom quanto eu lembrava (ou a minha nostalgia me blindou… por mim tanto faz) e, de quebra, descobrir que o Neo tá ouvindo Massive Attack no fone de ouvido na primeira cena em que ele aparece.
A botina Timberland paraguaia de Ezequiel pisou na poça d’água marrom, sujando sua calça jeans enquanto ele saltava pra calçada na descida do ônibus. Olhou pra baixo revoltado com a situação, enquanto equilibrava no ombro uma mochila grande demais. O ônibus berrou um som metálico enquanto fechava a porta e seguia seu caminho. Ezequiel olhou pra ele e respirou fundo. Catorze horas de viagem e ele finalmente tinha chegado em Maravilha do Sul. Aproximadamente dois mil habitantes e zero barras de sinal de celular. Não aparecia no Google Maps. Apenas uma empresa de ônibus passava por ali – e ainda assim, era só de passagem. A rodoviária local não passava de um pequeno prédio verde-catarro dos anos 70 ao lado de um ponto de ônibus. O sol parecia fugir do dia da mesma maneira que um senhor de meia idade de boné saiu da rodoviária já trancando a porta. Ezequiel apressou-se até ele.
- Senhor! Ei! – falou. O homem fingiu que não ouviu. Ezequiel correu até ele, sua jaqueta balançando junto com a mochila. – Senhor!
Chegou um ponto em que ele não podia mais fingir, então virou o rosto pra Ezequiel.
- Sim?
- O senhor trabalha aqui na rodoviária, né? Tem algum mapa da cidade aqui?
- Mapa? Aqui não precisa de mapa não, pra onde tu quer ir?
- Eu só, hã, queria conhecer a cidade.
- Deve ter na biblioteca. – disse o homem e tratou de seguir seu caminho, como fazia todos os dias sem a interrupção de idiotas vindos de outras cidades.
- E onde fica a biblioteca?
O homem parou.
- Hm. Não sei, nunca fui lá. Deve ser ali pela praça. – apontou para o norte.
- Ah. Ok. Eu tô procurando alguém.
- Que bom, boa sorte. – disse o homem, sem olhar pra trás e acelerando o passo.
- O senhor sabe se...
Ezequiel achou melhor desistir.
Não havia muito o que fazer àquela altura. O horário comercial já havia acabado, os horários dos prédios públicos mais ainda. Era melhor começar a procura no dia seguinte. Assim que o homem se distanciou um pouco, Ezequiel começou a segui-lo pra ver onde ia dar. Era um senhor que com certeza conheceria a cidade, provavelmente iria parar num boteco pra tomar uma antes de ir pra casa depois do trabalho. Iria comentar as fofocas do dia com o pessoal do bar, xingar uns jovens, comentar do forasteiro que chegou na cidade hoje.
Ezequiel seguiu-o por cinco minutos pela estrada de paralelepípedos. Após virar uma rua, ao fundo pôde ver uma praça com umas árvores, um coreto, uma igreja atrás. Ao lado direito da praça, tinha um bar. Ezequiel sorriu pra si mesmo se gabando de sua capacidade dedutiva até que o homem virou novamente a rua e entrou num cercadinho velho de metal, depois tirou seu boné pra entrar em casa. Ezequiel deu de ombros e seguiu até o bar.
Tacou a mochila sobre uma mesa amarela da Skol e sentou. Não era um bar grande. Tinha um balcão velho e umas mesas distribuídas do jeito que dava entre a parte de dentro e a calçada. Tinha uma TV passando algum jogo de futebol. Tinha uma extensa coleção de chaveiros que cobria uma das paredes. Tinha várias opções de bebidas alcoólicas expostas atrás do balcão. Tinha a carcaça semimoribunda de um velho careca bêbado de camiseta regata que assistia ao jogo de futebol com a boca um pouco aberta e sem se mexer e com um terço da bunda sorrindo pra fora da bermuda. Era quase como uma estátua de carne de algo que lembrava um ser humano.
Tinha uma mulher de longos cabelos ondulados do lado de dentro do balcão, limpando um copo. Ela olhou Ezequiel de cima a baixo e só então perguntou o que ele queria. Ele pensou.
- O que... o que você tem de IPA?
- IPA? – fez a mulher com a voz rasgada por décadas de maços de Hilton longo. – Tem cerveja, tem cachaça, tem uísque...
- Sim, mas... American Pale Ale, tem alguma?
A mulher fez que não com a cabeça, confusa.
- Que tipos de cerveja você tem?
- Em lata e em garrafa.
- Sim, mas... – Ezequiel parou, pensou e desistiu. – Me vê uma Schin garrafa.
A mulher atendeu ao pedido prontamente.
Quando ela colocou a garrafa e um copo americano sobre a mesa dele (e ele percebeu que ela era muito mais alta que ele, o que o fez por um breve momento sentir algum tesão), Ezequiel aproveitou pra perguntar:
- Escuta, dona...?
- Márcia.
- Dona Márcia. Márcia do quê?
Márcia olhou pra ele.
- Hã. OK. Dona Márcia, hã, eu cheguei há pouco aqui na cidade. Vim da capital pra procurar o meu pai.
- Ah é? E quem é o teu pai?
- Então, essa é a parte engraçada. Hahah. – ele sorriu. – Eu também não sei quem é.
- Bom, aí fica difícil. Qual é o teu nome?
- Ezequiel. Ezequiel Boaventura.
- Boaventura. – Márcia pensou. – Boaventura... ô Zélio. Zeliô!
A carcaça do bêbado do balcão ganhou vida. O homem respirou como se seu coração tivesse pegado no tranco e ele virou a cabeça para o lado pra falar com Márcia. Quase deu pra ouvir os ossos rangendo no processo.
- Zélio, conhece algum Boaventura por aqui?
- Boaventura? – disse Zélio, a baba visível por dentro da caverna que ele chamava de “boca”. Ele respirou fazendo barulho e olhou pro lado, pensativo. – Não lembro de nenhum Boaventura na cidade. Por quê?
- Esse rapaz aqui é Boaventura e veio pra cá procurar o pai dele.
- Ah. – disse Zélio. – Sabe quem não tem filho?
- Eu. – disse Márcia.
- Eu também. – disse Ezequiel.
- Sim. Eu digo. Sabe quem tinha um filho mas desapareceu? O Matias, da farmácia.
- Ele é Boaventura? – perguntou Ezequiel.
- Não, ele é da farmácia. – disse Zélio, pensativo, largando a informação quase sem se dar conta do que falou. – Acho que... acho que tu pode ir falar com ele amanhã na farmácia. Quem sabe, né?
Ezequiel sorriu e concordou, depois perguntou onde ficava a farmácia. Zélio apontou vagamente e depois disse que antes ficava umas duas quadras para trás onde agora é a loja da Laila, que faz velas, e que antes de ser a farmácia do Matias ali era a sapataria do seu Medeiros, só que agora ele tá aposentado, e que ali ele tinha comprado uma vez um sapato de couro marrom que era o melhor sapato da cidade, a coisa mais linda, e que
Ezequiel ouviu a conversa de Zélio até o bar fechar. No processo, teria aprendido um pouco sobre a história da cidade se tivesse concentração suficiente para aguentar o papo de Zélio, mas depois do terceiro copo ele só ficava balançando a cabeça de forma afirmativa, como um boneco. Estava sóbrio o suficiente para perguntar no bar onde tinha um hotel onde ele pudesse passar a noite, então Márcia lhe falou da única pousada que existia em Maravilha do Sul, que era a pousada do Calculadora. Ezequiel precisou de algum esforço pra atravessar três ruas e chegar à pousada, que não passava de uma casa de alvenaria de dois andares. De uma janela do segundo andar, por sinal, Ezequiel teve a impressão de ter visto um vulto saltando e caindo sobre um arbusto. O vulto correu pra garagem e então passou por ele de bicicleta. O vulto era uma menina de não mais de treze anos, que ao passar por ele fez um “ssshhhh” com o dedo indicador sobre a boca e foi embora. Ezequiel seguiu-a com o olhar enquanto ela acelerava e ia se encontrar com um outro grupo de ciclistas. Lembrou-se o que estava fazendo ali e tocou a campainha. Dois segundos depois um homem que parecia um botijão de gás de bigode e óculos fundo de garrafa abriu a porta dizendo:
- Cinquenta reais por noite.
Ezequiel demorou pra entender o que estava acontecendo e então assentiu, pagou e dormiu.
Continua…
parei a leitura, para dizer: ainda nao assisti matrix, acredita? fiquei super afim e justo por essa sensação de primeira vez! =)