Mais um da leva de álbuns foda lançados recentemente: o novo da Kim Gordon. Pra quem não sabe/lembra, é a baixista do Sonic Youth que tá em carreira solo depois do fim da banda, e aqui ela mistura o rolê mais experimental/indie/noise/guitarreiro com batidas mais eletrônicas. Tem até elementos de trap e hip-hop, muito bem bolado.
Saiu também um EP novo do Gouge Away, um lance mais punk rock/rock alternativo noventista.
Não tenho muito a dizer sobre a morte do Akira Toriyama além de lamentar profundamente. Já teve uma edição anterior da newsletter em que eu falei sobre coisas dele que eu assisti pra além de Dragon Ball e que no geral valem a pena. E também o fato de que, curiosamente, eu escolhi pra ler um mangá dele no dia em que ele morreu, sem saber ainda que ele tinha morrido (a saber: o Manga Theater volume 2, onde a gente já pode encontrar vários elementos que ele trabalharia em outras obras depois, principalmente Dragon Ball).
Mas num nível mais pessoal: graças a Dragon Ball, uma vasta extensão da minha baixa adolescência foi ocupada com aquela que é provavelmente a mais longeva campanha de RPG que eu já mestrei, uma história contínua de 3D&T de Dragon Ball Z que chegou a gerar uma mesa paralela da qual eu participei como jogador. E RPG foi um troço bastante importante pra eu exercitar a criatividade na época, e provavelmente foi a pecinha de dominó virada lá atrás que chegou na peçona que é a newsletter que vocês estão lendo hoje. Aliás, ainda me interesso muito pelo tema - só falta organizar uma turma pra jogar. Os dados eu comprei recentemente, pela primeira vez na vida (antigamente só jogava com dados de seis faces de GURPS ou que tinham sobrado de um General perdido). SIM ISSO É UM CONVITE
Seguimos então no aguardo do Dragon Ball AF. Enquanto ele não vem, só nos resta o Dragon Ball SUS
E agora mais um episódio da série Lixeira Editorial, onde eu apresento contos meus que foram esnobados por alguma coletânea de alguma editora. Já que a editora não fez, faça você bom proveito e desculpa por remexer no cesto
Império
Seu Dino tinha batalhado muito para erigir seu Império.
“Império” era o nome do seu mercadinho. Começou como um armazém num cômodo de trás de casa, mas após alguns anos ele conseguiu expandir seus domínios: comprou a casa do vizinho e montou o mercado, que nessa configuração já durava uns vinte anos pelo menos. Não cresceu além disso – ainda que não por falta de vontade do Seu Dino. Ele botava a culpa era no preço das coisas. E nos três filhos.
Dininho, o mais velho, foi fazer faculdade numa cidade grande e nunca mais voltou. Márcio, o do meio, ajudava a tocar o mercado daquele jeito dele. Até estudou administração, mas Seu Dino achava que ele não tinha o que era necessário, era egoísta demais. A mais nova, Cilene, trabalhou até a adolescência no mercado mas pro Seu Dino ela não queria nada com nada. Foi estudar Direito e ele nunca soube como ela conseguiu se formar. Porém, tinha um diploma pra ostentar no currículo, o suficiente pra conseguir uma vaga de secretária de um advogado grande aí da cidade.
Tinha ainda a questão da Zelma, a mulher com quem ele cometeu algo que lembrava muito um casamento, depois que enviuvou de sua primeira esposa e mãe dos seus filhos. Ela ajudava no mercado e tinha botado Wesley, seu filho, pra ensacar mercadorias. Zelma cozinhava como ninguém, mas mal sabia somar dois com dois. Assumir a administração do Império parecia algo um pouco longe da realidade.
O prospecto de deixar o Império para qualquer uma dessas pessoas como herança incomodava profundamente Seu Dino. Então ele morreu.
* * *
O Golf branco rebaixado estacionou na rua de paralelepípedo, diante da casa de dois pavimentos. Tinha sido reformada fazia cinco anos. Márcio tinha muitas lembranças dela em seu formato antigo mas tentava não se ocupar com isso naquele momento, só entrou automaticamente como sempre fazia. Atravessou a sala tentando desviar do campo minado de brinquedos que sua filha deixara, sua calça jeans apertada e sua camisa polo Lacoste falsificada um número menor atrapalhando um pouco seus movimentos. Logo em seguida, a própria filha veio correndo até Márcio. Ele ergueu o corpinho magro da criança, deu um beijo no rosto dela e a carregou no colo até o cômodo seguinte. Concordou com qualquer coisa que ela tenha falado e depois a depositou no colo da mãe, que tinha acabado de lavar a louça. Então seguiu até a sala de jantar e fechou a porta atrás de si.
Era o último que faltava. Sua irmã estava embaixo da janela, enganchada no Instagram e no Status do Zap. Dininho estava ali também, prestes a ir embora. Na mesa retangular de madeira mais ao canto da sala, estava Zelma com um envelope de papel pardo em que ela pintou alguns girassóis e no meio escreveu “testamento” com uma caligrafia de professora de quarta série.
A chegada de Márcio foi a deixa de Dininho. Abraçou seu irmão com força e foi se despedindo.
— Infelizmente eu vou ter que ir, tenho muito tempo de estrada ainda. — Ele colocou a mochila cheia de apetrechos de bebê no ombro ossudo. — A Mari já tá me esperando no carro, e eu não quero pegar estrada à noite.
— Tudo bem — disse Márcio —, vai lá de boa que a gente se ajeita aqui.
— Muito obrigada de novo por ter vindo, Dininho — disse Cilene, um sorriso terno.
Dininho pôs a mão no ombro do irmão e respirou fundo:
— Eu confio em vocês. O que o papai decidiu, e o que vocês decidirem, tá decidido. O que for da vontade dele e de Deus, eu tô de acordo.
Márcio sorriu e concordou com a cabeça.
— Vocês são a melhor família que alguém poderia ter. Sigamos em frente!
Os irmãos se abraçaram de novo.
Com um sorriso de força e resiliência, Dininho deixou a sala e fechou a porta. Houve um silêncio respeitoso por alguns segundos. Alguém puxou a descarga no banheiro ao lado.
— Até que enfim — disse Cilene, acendendo um cigarro.
— Babaca do caralho. — Márcio puxou uma cadeira e sentou-se à mesa.
Quem saiu do banheiro foi Wesley.
— Foi embora o chato?
— Sim — disse Zelma —, já dá pra começar agora.
— Bom, nem sei o que tem pra começar — disse Cilene, rolando o celular. — Pode me entregar a chave do mercado, todo mundo sabe que é comigo que vai ficar.
Márcio deu uma risada sincera.
— Até parece. — Apertou o botão da garrafa térmica e encheu uma xícara de café. O movimento fez transparecer a tatuagem de tribal em seu braço esquerdo, que Cilene sempre achou cafonérrima. — Nunca que o pai deixaria o mercado pra ti. Nunca trabalhou direito lá, saiu pra ir estudar outra coisa...
— E ele deixou pra quem, então? Pra ti? A pessoa que afundou o mercado desde que botou a mão? Toque de Midas ao contrário?
— Não fala do que tu não sabe. — Márcio ia jogar na cara da irmã que ela só tinha arranjado aquele empreguinho porque tinha dado pro chefe mas preferiu tomar um gole de café em vez disso. — Todo mundo aqui sabe que o pai catava laranja no soco pra não abrir a mão, por isso a coisa tava difícil. Mas eu era a pessoa em quem ele mais confiava pra tocar o mercado.
— Bom — disse Zelma abrindo o envelope —, ele pode ter deixado o mercado pra mim. Ou pro Wesley.
Márcio e Cilene pararam o que estavam fazendo para olhar para a cara de Zelma. Ficaram assim por alguns segundos. Deram uma risada. Zelma ficou vermelha e Wesley não entendeu.
— Ele pode... pode ter deixado pro Dininho também, oras.
— Claro, Zelma. Com certeza — disse Cilene, dando coraçãozinho para uma foto da amiga de uma amiga. A foto da moça com o namorado na praia lhe fez mais uma vez querer estar em outro lugar que não ali. Deu mais uma tragada em seu Lucky Strike azul, tentando ignorar seu nojo pelo arrivismo de Zelma e dando graças a Deus por ela ser velha demais para poder lhe dar outro meio-irmão.
Márcio olhava para fora. Já vinha imaginando o que ia fazer com o Império para expandir o negócio. Comprar a casa do lado, renovar os caixas, colocar um sistema mais novo, atualizar a arquitetura interna, mudar o logotipo. Talvez até um slogan novo. “Mercado Império: o rei dos preços baixos”. Tinha começado um curso com um coach online que faria ele transformar o mercadinho em uma rede de supermercados em cinco anos. O plano estava desenhado. Bastava só ele pegar a grana que ele tinha certeza que o Seu Dino tinha guardado no cofre de seu escritório no mercado.
Tudo isso, é claro, sem o mais singelo toque de Cilene ou Zelma ou Wesley ou quem quer que fosse.
Zelma puxou seus óculos e começou a ler o papel contido no envelope. A letra do Seu Dino era uma sequência quase hieroglífica de rabiscos tremidos e amontoados.
— “A minha”... “a minha”... que que é isso aqui, Wesley?
— “Fiorino”. O carro.
— Ah. “A minha Fiorino fica pro Márcio.”
O carro para trabalhar. Márcio achou coerente.
— “A minha Renegade... fica para a Dilne”. — Zelma parou. — Quem é Dilne?!
— “Cilene”, mãe.
— Ah!
Cilene gostava do carro. Melhor que o Celta que ela dirigia.
— “A casa é pra ser dividida entre os filhos e Zelma”. OK. “O mercado...”
Márcio olhou para Zelma, o café indo à boca. Cilene ergueu uma sobrancelha. Zelma leu em silêncio e abriu a boca em choque.
— “O mercado”...? — Instigou Cilene.
— “O mercado deverá”... não é possível isso.
Ninguém entendeu nada.
* * *
Cilene e Márcio nunca tinham se abraçado com tanta força. Poucas vezes tinham sido tão próximos. O rosto de Cilene estava torto numa careta de choro insistente, assim como a correnteza de lágrimas parecia não ter fim. Márcio a abraçava, colocando a cabeça dela em seu peito, enquanto segurava o choro e tentava permanecer como uma farol de segurança.
Zelma prosseguia em choque, observando o mercadinho com o envelope pardo na mão.
Wesley tentava esconder um sorriso.
Ele acabou sendo o responsável pelo trabalho porque ninguém mais tinha a capacidade psicológica. Sabe-se lá como Seu Dino tinha conseguido aquele equipamento todo, mas o fato inescapável era que Wesley tinha em mãos um controle remoto com apenas um botão e uma antena de metal. O resto do material tinha sido distribuído ao longo de todo o mercado.
Com um pouco de pesar porém com mais vontade de ver o que ia acontecer, Wesley aguardava o sinal da família para acionar o equipamento.
Agarrado em Cilene como se ela fosse sua última esperança de que aquilo todo fosse mentira, Márcio fez um sinal com a cabeça. Wesley apertou o botão. O mercadinho explodiu.
O cofre do escritório guardava dinheiro, mas também guardava os explosivos. E só esses últimos foram tirados do cofre.
O estrondo lhes deu um susto e a visão macabra do prédio desaparecendo e se transformando em fumaça e minúsculos pedaços de cimento e plástico e metal e frutas e carnes e pães e produtos de limpeza fez a emoção bater de vez nos irmãos abraçados. No apertar de um botão, no espaço de alguns segundos, não havia mais nada para eles. Tudo derretia. Tudo. Derretia.
Seu Dino tinha sido específico no testamento. Seus filhos deveriam eles mesmos distribuir os explosivos e ficar para assistir o Império sucumbir.