Não Sei Desenhar #12 - 19/11
nesse calorzinho que se aproxima, água com gás com limão e gelo é um caminho sem volta
“O bom da folga é que a gente tem mais tempo pra trabalhar”
Iris Pereira Engelmann, minha namorada e meu orgulho
O Jack White tá de musiquinha nova:
O White Stripes (a banda anterior dele, pra quem não tá ligado) foi o meu Led Zeppelin pessoal, na adolescência. Rock simples, pesado e criativo, aquela coisa. Não gosto de tudo que ele lançou na carreira solo mas ainda é um cara que eu admiro e essa música nova tá divertida. Vem seguindo o que ele vinha fazendo, essa mistura de power pop com soul/hip-hop (que por si só é uma variação do som do próprio White Stripes, que pegava um rock básico e fazia uma ponte com o blues mais cru). Sem contar a questão da identidade visual que continua sendo muito forte, desde Aquele Tempo…
… e na carreira solo…
… por isso pra mim fez muito sentido quando ele pintou o cabelo de azul.
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E ainda sobre música: o último álbum do Fugazi, The Argument (SONZERA), fez 20 anos mês passado e tem um artigo sobre isso no Stereogum.
E ainda sobre música
Normalmente eu não gosto de mostrar as inspirações pros contos aqui da newsletter antes do conto per se mas dessa vez eu achei legal falar disso. O conto da semana é baseado num anime dos anos 90 chamado Yokohama Kaidashi Kikou, ou Yokohama Shopping Trip Log. Tem dois episódios, que saíram em dois VHS, e até outro dia tinha no Youtube com legenda em português mas segue abaixo com legenda em inglês mesmo:
É sobre uma androide vivendo num Japão idílico pós-apocalipse. Não se sabe o que aconteceu, mas as ruínas estão por tudo e, apesar disso, não é um pós-apocalipse estilo Mad Max. Tudo é muito calmo, os cenários são bonitos, os conflitos são mínimos, a trilha sonora é levinha. É realmente um troço bem diferente, um grande respiro. Andei passando por uns dias estressantes aí e acabei me lembrando dele. Aproveitei pra dar mais uma pesquisada em outros trabalhos do mesmo autor - porque o anime se baseia num mangá de um cara chamado Hitoshi Ashinano. Segundo a Wikipédia, Yokohama Kaidashi Kikou durou de 1994 a 2006 (!) mas o cara tem várias outras obras no portfolio. Fui olhar a mais recente dele, um quadrinho chamado Kotonoba Drive e fiquei fascinado: a proposta é muito parecida. A diferença é que a personagem (que também vive num cenário idílico) tem umas visões sobrenaturais que duram 5 minutos. É como se dessa vez ele flertasse com o terror, mas o mesmo prazer por paisagens simples, o mar e situações cotidianas segue. O desenho não é nada de mais e os mangás dele parecem não ser sempre tão bucólicos quanto o anime supracitado, mas talvez valha uma olhada. As histórias são curtas e simples - provavelmente se encaixa no gênero slice of life. Dito tudo isso…
Biano observava a lagoa. Era uma lagoa que existia há pouco tempo. O sol das oito da manhã batia de lado e aos poucos os raios amarelados davam lugar a um céu azul com nuvens que pareciam ter sido pintadas à mão. As sombras azuis se misturavam com a fofura branca que se misturavam aos poucos com o brilho da água que refletia o céu e as sombras azuis. Um bem-te-vi cantava em algum lugar e Biano percebeu um quero-quero pairando sobre o que havia sobrado de um semáforo. Estava torto e a maior parte dele estava submerso. Ao lado dele, alguns telhados de casas e topos de prédio pareciam boiar parados sobre a água da lagoa. Havia uma passarela que ia da água para a água. Mais ao longe, um viaduto que começava na água mas desvanecia no ar. Um edifício de sete andares deitava sobre a lagoa, metade submerso, e não acordava nem com o movimento dos peixes que passeavam pelas suas janelas. Biano estava sentado numa mureta à beira da estrada, confortável mas não completamente descansado. Suas costas estavam eretas, suas pernas formavam um ângulo de 90 graus e suas mãos repousavam sobre os joelhos. Olhava sem analisar, e quase sem piscar. Quando o fazia, parecia mover as pálpebras em câmera lenta, como se seu corpo estivesse em outro tempo ou framerate.
Ouviu passos se aproximando dele. Não se moveu.
- Precisamos de farinha de trigo. – disse a voz de Mile.
Biano moveu o pescoço lentamente e fez que “sim” com a cabeça. Voltou-se para a lagoa e viu um quero-quero levantando voo a três metros de distância dele enquanto cantava. Biano puxou o ar pra seus pulmões, sentindo-o entrar e tomar conta de seu peito, sentindo cheiro de grama e do chá de erva-doce que Mile estava bebendo. Após encher os pulmões, soltou o ar e deixou ele fluir de volta, se misturando aos outros ares que pairavam ao redor dele. Então içou seu corpo sem pressa.
No futuro, o mundo se tornaria um deserto parcamente habitável, mas esse momento ainda não chegou. As coisas já haviam sido destruídas, mas não completamente. O verde ainda era algo comum. Biano, Mile e Homera já tocavam o Último Restaurante que existia, ainda que em outra paisagem. E por causa dele, Biano pegou sua bicicleta, colocou um mp3 player no bolso e um fone de ouvido na cabeça e partiu.
A bicicleta cantarolou um rangido e se afastou do restaurante. O cenário deslizava por Biano enquanto ele observava os edifícios partidos ao meio, o mato que subia pelas paredes, as janelas quebradas que refletiam sua passagem. Uma revoada passou por ele, um cachorro dormia à sombra do que restava de um ponto de ônibus. Gostava quando as nuvens tapavam o sol ligeiramente e ao mesmo tempo em que aliviava os olhos, formava desenhos no chão com suas cores. O chão. O mato dividia espaço com o que sobrou de cimento e de asfalto cinza-claro. A bicicleta de Biano passeava sem dificuldade. Às vezes, Biano deixava escapar um sorriso. A visão era pra ele como um ASMR visual.
Encontrou o ponto de chegada. Um antigo mercadinho que naquela altura não tinha mais clientes e nem vendedores. Bastava chegar e pegar o que precisava, e o que ainda estava dentro da validade. O único desafio era chegar bem à frente da porta e entrar. Porque entre ele e a porta, no meio da estrada, havia um tapete de gatos.
De variados tipos e tamanhos. Malhados, peludos, magrelos, gordos. A grande maioria deles dormia no asfalto, aproveitando o sol. Biano encostou a bicicleta e olhou pros gatos. Tirou seus calçados e os colocou ao lado da bicicleta, sem fazer barulho. Andou, pé por pé. Procurou por caminhos de asfalto no meio dos pelos coloridos e foi alocando seus pés nas partes cinza, na medida do possível.
Sem querer, pisou numa pequena pedra e fez um barulho de dor e susto com a boca. O gato mais próximo de seu pé abriu o olho e se espreguiçou. O gato do lado piscou lentamente. O gato atrás de Biano fez um “rrr?”. Outro gato próximo também se espreguiçou. Os gatos mais à frente começaram a se sentar, bocejando. O efeito dominó seguiu, de forma reversa: quem estava deitado fazia os próximos se levantarem. E Biano estava no centro de tudo.
O primeiro gato passou com força o rosto na sua perna. Outro gato veio esticar as patas na frente dele e depois passar a cabeça na canela dele. Um gato gordo se aproximou de seu pé esquerdo e começou a lambê-lo. Biano sorriu com a sensação de lixa da língua do bichano. Aos poucos, deixou seu corpo se aproximar do chão, se apoiou com as mãos e sentou-se por fim, em posição de lótus. Os gatos pareciam sorrir pra ele, principalmente quando ele fazia carinho na cabeça ou no queixo deles. Um ou outro até deixava ele fazer cócegas em suas barrigas. Os gatos se lambiam e ainda havia alguns mais distantes que dormiam apoiados uns nos outros, na sombra.
Biano deitou-se no chão.
Mile olhou o relógio. A luz rósea do céu do fim de tarde refletia no vidro dele e também nos seus olhos, que mudaram o foco para a lagoa. Alguns cardumes passeavam enquanto, um pouco mais acima, teve a impressão de que os primeiros vagalumes começavam a aparecer. Observava tudo com os cotovelos apoiados na mureta do que era uma casa de madeira e cimento. Tinha olhado no relógio não por pressa, era mais para se certificar de que havia acontecido o que ela achava que havia acontecido. Girou a toalha que trazia e colocou-a no ombro direito, e então se virou para voltar ao restaurante. Foi quando encontrou Biano chegando, com alguns pacotes de farinha de trigo pendurados em vários pontos da bicicleta.
- Os gatos de novo? – ela perguntou.
Biano parou a alguns metros dela e depois começou a tirar alguns dos pacotes de farinha da bicicleta, com a ajuda de Mile. Ela ficou olhando pra ele, após a pergunta. Ele não olhou de volta. Pareceu largar um sorriso como quem tropeça num chão desnivelado. Balançou a cabeça positivamente.