A falácia do planejamento:
A falácia do planejamento descreve nosso viés natural quando prevemos nossa própria produtividade: focamos mais no melhor cenário possível, ou algo perigosamente próximo disso. Raramente esse cenário funciona.
A dica então da newsletter Range Widely: planeje fazer menos coisas pra fazer mais coisas.
Feliz ano novo!
Fuçando no catálogo esquisito do Prime Video, um catálogo que tem ainda mais uma vibe de locadora de bairro do que a da Netflix (só que mais anos 90 assim), achei uma versão remasterizadda de My Lucky Stars, ou Estrelas do Kung Fu. A cópia está LÍMPIDA, coisa fina mesmo.
Pena que de kung fu tem muito pouco. Cada vez mais me parece que os caras enfiavam o Jackie Chan ali pra chamar a atenção, porque o maluco aparece em tipo 20% do filme, no começo e no final, e só é aproveitado pras cenas de ação mesmo. O resto é o Sammo Hung e seus comparsas fazendo umas bobeiras. Eu até não me importaria com o fato de o filme ser uma comédia anárquica e boba pela maior parte, só que tudo tem uma dinâmica tão Trapalhões que eu simplesmente não consigo. Não é pra mim isso aqui. O meio do filme é meio modorrento. Tem até um registro audiovisual de algo que é muito anos 80/90, que é a piada de louco, do mesmo modo como se tinha a piada de loira, de papagaio, etc.
Mas quando o Hung coloca o conjuntinho de moletom de uma cor só, aí tu sabe que a coisa fica séria. Pelo menos no sentido de pancadaria, sério mesmo o filme nunca é. As cenas de ação no parque são mais interessantes e quase dá pra ver as cordas dos produtores e do roteiro se mexendo pra fazer caber a história no cronograma de filmagem, já que parte do rolê se passa no Japão, mas é do jogo.
Esse não é nem de longe o melhor filme encabeçado pela dupla Chan/Hung (esse é Dragões Para Sempre de longe), mas é bom saber que ele tá ali no Prime de forma fácil de achar - e que tem outros dessa fase, como Dragões Para Sempre e Perdedores e Vencedores.
Sem precisar fuçar tanto assim no catálogo (depende do teu algoritmo), saiu finalmente na Netflix brasileira o Jigarthanda DoubleX, novo hit do cinema indiano/tamil. Assim, é difícil não comparar com RRR mas é o que eu tenho de referência em termos de filme bollywoodiano.
Em comparação: RRR é com certeza mais espetaculoso, as cenas de ação são sem dúvidas mais bonitas e grandiosas, mas esse bate mais forte. São temas diferentes e eles basicamente só se encontram no sentido de serem da mesma indústria e operarem pela mesma lógica narrativa. Então Jigarthanda tem música e cenas de ação doidas, ainda que a seu próprio modo, e tudo mais contido de certa forma.
Jigarthanda DoubleX é provavelmente muito mais óbvio em seus temas do que o próprio RRR, mas isso trabalha a favor do filme. O drama pega justamente por isso. O cinema (e a arte) enquanto arma política e de redenção e de mudar vidas, a capacidade de criar imagens que alimentam outras e se recriam e recriam a si mesmas e como elas influenciam as pessoas. Existe, é claro, uma inocência muito bonita nesse discurso mas aí eu sou um pouco cínico no que tange ao poder transformador de filmes como um todo e com certeza posso estar errado mas isso me pega um pouco. Como um bom filme de Bollywood, ele quase bate nas três horas de duração e a trama é cheia de reviravoltas rocambolescas mas todo o desenvolvimento funciona e se encaixa de um jeito bem satisfatório no fim.
Não quero falar muito mais porque o filme é novo e fácil de achar, então fica a recomendação (e se for ver, comente aí nos comentários, na parte de comentar, vamos todos comentar esse filme e ser felizes juntos. Eu quero muito comentar esse filme então preciso que mais gente veja).
Você sabe.
Você quer ficar longe da TV, você não aguenta mais ouvir falar nisso. É aquele momento do ano. Aquele.
Ele chegou.
O Big Brother Brasil.
Mas você é uma pessoa que está ALÉM do BBB. Que merda é essa, até hoje encardindo a sua TV??? Quem é esse tal de Bolinho???? Você não sabe quem são essas pessoas. Você? Você está ACIMA disso. Acima dessas coisas pedestres e vazias. Você tem um célebro. Você lê LIVROS.
Por isso, seguem aqui umas
10 indicações de livros pra ler enquanto a TV passa BBB 24
Morri para viver, a biografia da Andressa Urach
Almanacão de férias da Turma da Mônica
A Bíblia sagrada (se possível a versão narrada pelo Cid Moreira. Aí não precisa nem ler)
Maravilha do sul, um grande clássico da literatura do sul do Brasil
Dois filhos de Francisco (se possível a versão em filme, que não precisa nem ler. Nenhuma relação com participante algum do BBB 24)
Iluminações, do Alan Moore
As aventuras na Netoland com Luccas Neto, do Luccas Neto
Disco Elysium (é um jogo, mas tem muita coisa pra ler)
Todas as edições passadas da newsletter Não Sei Desenhar. Se tu ler uma por dia, vai dar mais ou menos o tempo de duração do BBB.
por essas e por outras, segue abaixo um conto novo:
ØĽřŋdžȻʭ.wav
O grave tremia as paredes do inferninho, o agudo fino gania nos ouvidos e as batidas secas faziam todos ali dançarem sob as luzes estroboscópicas e os parcos feixes de laser verde piscantes. Ou melhor, quase todos. Tinha um casal lá no fundo. O DJ Max os notou desde que começou seu set.
O casal mal se mexia. De tão destoantes do resto do público, pareciam brilhar em suas roupas excessivamente brancas. Ela balançava um pouco o copo em uma música ou outra, batendo nele com o indicador adornado por uma unha enorme e olhando em volta sem se reconhecer no local. Ele estava parado como a estátua que era, o corpo claramente esculpido por anos de academia (e bomba) e, assim como sua consorte, o rosto claramente talhado pela harmonização facial.
DJ Max tentava não olhar para eles, mas era difícil. Os únicos sem dançar na pista toda. O techno europeu cavernoso de bumbos retos e percussões curvas, com baixos oblíquos e sintetizadores obscuros não surtia efeito nenhum neles. Nem um pouco. Normalmente ele não se importaria se apenas um casal no meio de dezenas de pessoas não estivesse dançando. Era perfeitamente corriqueiro. Mas dessa vez ele estava quase sendo ofendido pela imobilidade dos dois eucaliptos humanos presos ao chão por raízes profundas e com seus caules intumescidos de ácido hialurônico. DJ Max balançou a cabeça e decidiu ignorá-los porque tinha uma música pra virar, e toda uma pista para fazer dançar como vinha fazendo durante pelo menos uma hora em seu set e como fazia semanalmente na casa.
Ele tinha selecionado a música e estava iniciando a transição a partir dos agudos quando ouviu um barulho diferente. Não era da música. Alguém berrava com ele. Ergueu os olhos pra além de sua controladora e viu do outro lado da cabine uma cabeça quadrada, de cabelo perfeitamente quadrado e que combinava perfeitamente com a quadradice de seu rosto facialmente harmonizado. A visão fez o DJ Max levar um ligeiro susto.
—Ei! — berrou o rosto, contorcendo-se.
O homem ofereceu um copo de plástico contendo alguma bebida amarela cheia de gelo. O DJ só negou com a cabeça e com um sorriso pouco simpático. Voltou a focar na transição da música.
— Ei!
Com um misto de reação automática e revolta, o DJ Max olhou de novo para o homem à sua frente.
— Toca ØĽřŋdžȻʭ!
— O quê?!
— Toca ØĽřŋdžȻʭ, porra!
— D-desculpa amigo, não tenho essa...
— Quê? Como não?! Que tipo de DJ é você?
DJ Max respondeu dando de ombros.
— Peraí! — disse o homem, e deu meia-volta.
Um minuto depois ele apareceu de novo, mostrando um celular com um cabo P2-P2, ligeiramente atrapalhado porque ainda segurava o copo.
—Aqui — ele disse. —Pode espetar aí e bota a música rolando do meu celular.
— Cara, desculpa — DJ Max tentava berrar com simpatia no meio do som alto. — Não vai rolar, não tem nem essa entrada aqui.
O homem olhou derrotado para o DJ Max, com uma raiva escondida. Saiu batendo os pés e voltou para o canto da pista abrindo caminho no meio do público dançante como um Moisés bronzeado abrindo um Mar Vermelho de gente. DJ Max voltou a tocar e se incomodou muito pouco com os olhares furiosos do homem quadrado e de sua mulher.
Uma hora depois o DJ Max saía do clube com sua mochila, sozinho e despreocupado. A luz amarela dos postes sobre a calçada guiava seu olhar enquanto ele passava pela frente do clube, lotada de gente conversando.
— Ei — disse uma voz conhecida.
DJ Max virou a cabeça rapidamente e encontrou o homem e sua mulher, encostados na parede, fumando.
— Legal o teu set — disse o homem. — Na próxima, vê se toca ØĽřŋdžȻʭ.
—Pode deixar — disse DJ Max querendo desaparecer.
Sentiu os olhares do casal queimando sua nuca enquanto se afastava.
Que música era aquela? Tudo bem que ele nunca tinha ouvido falar de muitas músicas, mas aquilo soava diferente para ele. O nome era um barulho. Não parecia ser em nenhuma língua que ele conhecia. Puxou o celular e enquanto caminhava na madrugada, buscou pelo nome no Google. Nada. No Spotify também não, menos ainda no Beatport. Nem no Youtube. Então um barulho.
DJ Max levou um susto com a buzina do caminhão a cinco metros de distância dele: estava parado no meio da rua mexendo no celular. O farol de milha do caminhão lhe atacou os olhos e ele fez questão de sair correndo de volta para a calçada.
Em seu apartamento minúsculo a quatro quadras do clube, abriu seu notebook e pesquisou de novo sobre a música, com mais calma. Ainda nada. Lembrou-se dos programas mais antigos de compartilhamento de arquivo. Abriu o Soulseek, abarrotado, veterano de guerra, acordando de seu sono milenar. Pesquisou pelo nome da música.
Estava lá. Apenas uma pessoa possuía ØĽřŋdžȻʭ.
Não demorou um segundo para clicar para baixar. Um arquivo .wav, o que sugeria alta qualidade de reprodução. O download foi vindo lentamente, como na era da internet discada, a música pingava para dentro do computador do DJ Max em gotas vagarosas. Ele tentou clicar de novo no nome do arquivo como se isso fosse fazer a música baixar mais rápido. Clicou de novo. A música estava se entranhando no Windows do computador e parecia também estar ganhando espaço na mente do DJ Max. Então veio. Download concluído. DJ Max mal esperou para clicar duas vezes e dar play na música.
A música começou. O som inicial era de um eco grave ininteligível, seguido de um bumbo repetitivo, 4x4, 120 batidas por minuto. DJ Max tentou entender o que era aquele som, buscando referências, de onde viria aquele sample? Ou era um sintetizador? Então seis minutos depois, a música acabou.
DJ Max piscou conscientemente. Chacoalhou a cabeça e se deu conta de que a música não estava mais tocando. Será que o arquivo veio quebrado? Não, o relógio do computador também avançara. Pôs a música para tocar de novo. O som grave veio, depois o bumbo. OK. DJ Max se concentrou. Os detalhes da música. Eles estão ali. E depois nada. Ele se vê paralisado.
É como se esquecesse da música logo depois de ouvi-la. DJ Max deu o play nela mais uma vez. E depois de novo. Botou no repeat. Aumentou o volume para que só a música existisse na sua mente e ele não prestasse atenção em mais nada. Às cinco da madrugada, o vizinho de baixo bateu no teto, reclamando. DJ Max copiou a música para seu celular, botou um fone de ouvido e deitou-se na cama, tentando entender aquela música. Respirou fundo e se concentrou. A música veio novamente, como que depurada, o barulho de fora cancelado pelo fone de ouvido. Seis minutos depois, ela acabou e o DJ Max não sabia o que acontecera, era como se tivesse perdido seis minutos de vida. Não fazia o menor sentido. Ele passava a música pra frente, tentando ouvir ela da metade em diante mas nada adiantava.
Repeat. A música tocou, e tocou, e tocou de novo. O eco parecia ressoar diretamente no seu cérebro, a música pareceu ter criado raízes no seu crânio, o bumbo batia estremecendo sua cabeça, e depois seu peito, e depois o corpo inteiro. Repeat. O eco invadia sua mente, buscando os cantos mais escondidos onde se engalfinhar, o bumbo tomava o controle dos seus olhos, do seu pulmão, da sua pele. Repeat. O eco gritava por todos os lados do que antes fora a alma do DJ Max, perseguindo seu ser por corredores intangíveis e ao mesmo tempo sólidos, e DJ Max não tinha para onde correr. O bumbo atravessava seu coração diuturnamente, quatro por quatro, cento e vinte batidas por minuto. Cento e trinta. Cento e sessenta. Duzentos e quarenta. Quinhentas. O nada no meio da música. DJ Max desaparecia para dentro dela, sugado por um vácuo até então sonoro mas quase palpável. Repeat. Só o eco existia no DJ Max agora, batendo e rebatendo nos limites da sua própria existência onde quer que eles fossem sem saber onde começava e onde terminava e tudo se tornava um feedback eterno imparável insuportável eterno onde nada era mas tudo era os ecos de si mesmo e do próprio eco e nada mais se reconhecia, e o bumbo a mil e quinhentas batidas por segundo tremia seu corpo seu sangue pulsava e bombeava sangue pra fora do seu nariz e seus dedos formigavam o sangue encharcou o fone de ouvido e pingou no travesseiro até formar uma pequena cachoeira vermelha. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat.
DJ Max abriu os olhos ensanguentados.
Era noite. Olhou o horário e a data no celular. Ia discotecar de novo dentro de uma hora. Como fazia semanalmente. Com a roupa do corpo, sem tomar banho, saiu com sua mochila direto para o clube. No espelho do elevador, não viu as manchas vermelhas que vertiam de suas orelhas e olhos.
Na hora de tocar, fincou seu pendrive atualizado na controladora. Torceu o botão para selecionar a primeira música do seu set. ØĽřŋdžȻʭ.
Olhou para a pista. Apertou o play.
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