Não Sei Desenhar ₾116 - 15/12/23
a sua revista eletrônica semanal sobre como sobreviver sob temperaturas de 38 graus diariamente
Bem legal O Efeito He-Man, quadrinho documentário novo do Box Brown que saiu esses tempos aí pela Mino. O cara costura uma história que começa na origem da propaganda moderna e como ela influencia as pessoas, desde a infância, e como ela foi WEAPONIZADA pra virar uma máquina de vender coisas pra crianças e pra adultos que sentem nostalgia pelas coisas de quando eram crianças. Isso tudo vai resvalar na história da TV americana, Star Wars e, claro, os bonecos do He-Man e outros desenhos dos anos 80.
A grande treta do rolê todo parece justamente os anos 80, com a desregulamentação da propaganda pra crianças nos EUA durante a era Reagan e coisarada. Sabe aquelas lições de moral do He-Man no final dos episódios? Só tão ali porque eles precisavam ter algo “educativo” pro desenho não ser só uma propaganda de meia hora dos bonecos. E é daí pra baixo, tem umas frases pesadíssimas de uns caras grandes do governo americano e das empresas de brinquedos.
Felizmente a coisa toda não é tão “moralizante”, em parte acaba sendo um recorte bem pessoal mas é tudo bem amarrado em termos de discurso. Me incomoda um pouco, mas acho isso é meio inevitável por se tratar de um documentário em quadrinhos, o quão frequentemente os desenhos tão ali só pra dizer que o negócio que tu tá lendo é um quadrinho e não necessariamente constroem algo em conjunto com o texto. De qualquer forma, no geral funciona e a coisa toda tem vários momentos bons, ele desenterra umas informações que parecem óbvias mas que no contexto são um tanto revoltantes.
Sabia que em 2024 o Mickey em tese vira domínio público? Já era pra ter virado nos anos 70 mas a Disney conseguiu meter o lobby pra esticar a lei de direitos autorais. Agora é esperar o lobby deles agir de novo pra gente continuar pra sempre preso nas garras deles e ver a criatividade e a visão de mundo de TODOS serem cooptada pra toda a eternidade.
No âmbito das novidades do future funk, esse gênero de música eletrônica que bebe muito em city pop e disco anos 70/80, saiu o novo do Aexion
Por algum motivo esse transe hipnótico musical abaixo ressurgiu na minha memória, talvez devido ao Youtube. Por mim tudo bem
Aliás, e eu que achava que essa versão de Lágrimas Negras do Jorge Mautner com o Nelson Jacobina só tinha no Youtube, e aí descobri que ela tá sim no Spotify também só que com outro nome???? “Lágrimas Secas”?????? O que rolou aqui galera???? Inclusive desculpa Gal mas essa versão é a melhor de todas. Espero sinceramente que tu me desculpe por isso. Não Gal não me olhe desse jeito por favor Gal
Em tempos imemoriais nesta mesma newsletter eu falei de um filme de animação dirigido pelo lendário Osamu Dezaki, o primeiro dos filmes dele sobre o Golgo 13, de 1983. O Dezaki, a saber, é uma das maiores lendas do anime, um cara que ajudou a criar a estética da coisa toda como a gente conhece em trabalhos que começam no final dos anos 60. Um desses trabalhos foi a série de TV de Ace o Nerae, ou “Aim For The Ace”, de 73, baseado no mangá homônimo. Cheguei a começar a ver e o lance quase impressionista dele já tá ali espalhado pela coisa toda, tudo voltado pra um drama fortíssimo.
Aí que em 1979 ele dirige um filme de Ace o Nerae, que meio que resume uma parte da série. Vendo o filme agora eu consigo perceber a influência que Ace o Nerae tem espalhado pelo anime afora. Dá pra ver claramente ali coisas que depois seriam aproveitadas/referenciadas em Utena, Kill La Kill, Gunbuster, etc.
Assim: é um anime de esporte, acima de tudo, com tudo que isso implica. O tênis é A COISA MAIS IMPORTANTE da vida daqueles personagens todos e tudo é tratado com uma seriedade e uma dramaticidade muito direta e não-irônica. Ao mesmo tempo, tem algo de uma nostalgia pela juventude, de tempos mais simples, uma inocência que talvez tenha a ver justamente com essa dramaticidade. Hiromi Oka, menina do primeiro ano do ensino médio que tá no time de tênis da escola e é fanática por uma jogadora um pouco mais velha, acaba sendo escolhida por um treinador novo e misterioso pra entrar pro time oficial oficial. E aí nem ela acredita nela mesma, quem dirá as outras pessoas - mas o treinador quer ela de qualquer jeito. Então o filme é um grande arco de treinamento onde ela passa por todo o drama que é crescer como jogadora e como adolescente também. Além disso a gente acompanha um pouco da história do treinador e, não sem um tom de machismo escorregando pela coisa, a menina quase vira um joguete na mão do cara. Mas no fim é tudo pelo drama.
E o estilo do Dezaki tá ali: as cenas mais emocionantes funcionam e tudo isso é estilizado visualmente. Mudanças de cores, pausas pra closes, a imagem se dividindo em várias, o cenário desaparecendo, ligações telefônicas no meio da madrugada pra falar sobre tênis… o Dezaki eleva tudo à máxima potência e funciona. O roteiro tem algo de apressado então ele de certa forma precisa compensar com uma narrativa visual que seja PUJANTE. Aqui ele tem vários momentos mais realistas, ainda não chegou no grafismo quase puro que ele iria atingir no Golgo 13, mas o que ele faz aqui ainda é poderosíssimo. O trabalho de fotografia e cores, os cenários aquarelados - até eles são puro drama.
Quem é Rocky Balboa perto de Hiromi Oka?
NO EPISÓDIO ANTERIOR: Brenda vaza não sei pra onde, enquanto Valdir e Dona Isolete vão parar no Cunion, um lugar que seria perfeito pra uma festa de casamento ou pra comemorar o aniversário do seu filho pequeno. Para alugar o Cunion para sua festa, mande um zap para
s02e04: onde essa gente se esconde?
O clima úmido parece deixar as folhas das plantas que verdejam ao longo da estrada de chão batido quase brilhantes, mas Herivelto não presta muita atenção nelas. O vale além das plantas emoldura o céu nublado, que por sua vez está salpicado pela visão de pessoas-pássaro voando sem pressa de um lado para outro. Um ritmo bem diferente da Topic velha em que Herivelto chega, junto com um colega de Khepresh. A missão é certeira: um vilarejo inteiro cheio de gente que nunca ouviu falar no Khepresh, folhas em branco prontas para serem preenchidas por números e tabelas e contratos de compra.
Uma garrafa d’água foi pouco para aguentar o calor da subida torta das montanhas com suas estradinhas quase curtas demais para a Topic. Mas Herivelto sabe que vai valer a pena. Tem que valer a pena. Ele tenta não pensar muito nisso: o importante é angariar novos aventureiros e o vilarejo com certeza tem muito potencial. É essa ideia que fica em sua cabeça depois de a Topic acertar uma pedra e desistir de andar, e fazer ele e seu colega serem obrigados a caminhar por mais duas horas até chegar no centro do vilarejo. Tem que valer a pena.
Enlameados, suados e abarrotados, eles decidem se dividir. Cada um para um lado do local, cada um prospectando do seu jeito. É bom para o Khepresh e assim ninguém corre o risco de roubar o cliente de ninguém. Herivelto caminha com alguma dificuldade pela estrada de chão procurando por clientes em potencial mas o que ele mais encontra é mato. E umas vacas. Em um ponto ou outro surgem pequenas hortas, mas ninguém trabalhando nelas. Onde essa gente se esconde? Aos poucos umas casas de madeira e bambu aparecem pelo meio do matagal. A estrada de chão o leva para o que parece ser um ponto sem saída: uma inclinação na terra que parece uma rampa para o nada. No nada, ele finalmente vê gente.
Um punhado de pequenas pessoas-pássaro, que tentam imitar os movimentos feitos por uma mulher-pássaro maior, de frente para elas. Ela faz movimentos graciosos mas precisos com os braços e pernas enquanto se mantém flutuando com as asas. A mulher-pássaro ensina os movimentos para as crianças-pássaro, com calma, numa língua que Herivelto nem sonha em entender. Ele se aproxima, pé por pé, tentando não atrapalhar, mas a mulher-pássaro o vê e isso atrai a atenção das crianças. Todas elas param para olhar aquela visão improvável no meio da aula.
— Podem continuar — diz Herivelto, sorrindo.
As crianças olham para a professora, que por sua vez fala algo na língua local para elas. Minutos depois, a aula parece acabar mais cedo e todos aterrissam na rampa. As crianças olham para Herivelto, estranhando-o, algumas dando umas risadinhas, uma delas puxando sua roupa, depois saem correndo estrada adentro. A mulher-pássaro se aproxima e Herivelto percebe que ela usa uma variação da roupa das crianças: tecidos simples marrons de estampas quadriculares, com partes bufantes e um chapéu estranhamente cúbico.
Ela fala algo na língua dela e Herivelto não entende. Parece só um pio muito longo e distorcido.
— Desculpa, mas eu não entendo — ele diz.
Ela faz um sinal para acompanhá-la e levanta voo. Herivelto a segue por caminhos diferentes na estrada, até agora desconhecidos, e ela aterrissa numa casa que parece ser um pouco maior que as outras. A mulher-pássaro espera ele chegar e convida-o para entrar.
Herivelto sobe uma escadinha de bambu, limpa os pés e arrasta a porta de madeira para colocar a cabeça dentro da casa antes de entrar. Encontra uma dezena de outras pessoas-pássaro, de diferentes idades, rodeando um homem-pássaro muito mais velho que está sentado sobre os próprios pés, num tatame. Ao lado do velho, está seu colega de Khepresh. Ambos bebem algo servido em um tipo de cumbuca do tamanho da palma de uma mão.
Em outro contexto, Herivelto se sentiria ameaçado por uma situação daquelas. Porém, há algo no ar que parece transmitir uma calmaria. Ouve-se apenas o som de um rio passando ao longe e o retinir leve de algum címbalo cerimonial. As pessoas-pássaro parecem estar sorrindo sem sorrir, um estado de espírito que Herivelto não entende. Uma tranquilidade que ele só consegue definir como transcendental. Seu colega oferece uma cumbuca de chá.
— Herivelto — sussurra o colega —, eles querem saber tudo sobre o Khepresh!
Ganhando confiança aos poucos, Herivelto se senta ao lado do colega no tatame.
Bebe um gole do chá quente, doce e cítrico. O líquido espesso desce pela sua garganta e parece acalmar seus nervos quase que instantaneamente. Como se desatasse nós de preocupação que seu corpo vinha mantendo como um sequestrador. O címbalo toca. Ele fecha os olhos. Nunca tinha sentido aquilo antes. O tempo fica mais lento. O chá parece se espalhar pelo seu corpo, pelas suas veias, pelos seus músculos, até as pontas de todos os seus dedos. Um arrepio. O chá ou a calma?
Ele esquece o que tinha vindo fazer ali. O momento é mais importante. Abre os olhos. Tudo fica mais nítido. Ele percebe tudo à sua volta. Não há nada mas há tudo. Herivelto sorri sem sorrir.
🌀
Um dia inteiro caminhando no meio da branquitude com o vento cortando o rosto. Brenda está quase sem forças. A neve é como uma TV antiga fora do ar. Ela segue andando porque não tem escolha. Suas coxas doem na subida do morro, seus pés esburacando a camada grossa de neve. Ela só precisa parar e descansar, mas se parar e descansar ali, vai amanhecer congelada. Sua responsabilidade consigo mesma é seguir em frente, e assim ela o faz.
Ali. Atrás dos troncos marrons. Subindo o morro. Parece que tem algo. No meio do nada. A salvação? Contra o céu nublado quase noturno, uma esperança sombria se desenha no horizonte. Uma mansão velha caindo aos pedaços. Grande. Pode ser um hotel. Ou a morada de um vampiro. O que quer que seja, pra ela tá valendo.
Sem forças, Brenda sorri mentalmente e foca em subir até a casa com cara de abandonada. Chega até a correr, ou algo muito parecido com isso. A varanda de madeira se aproxima, vazia, tranquila, lhe dando as boas-vindas. Uma placa fala algo sobre “taverna” e o resto Brenda nem lê. É isso que ela precisava. Um momento de descanso e calmaria, uma lareira e uma cama quentinha. O alívio toma conta dela quando ela sobe o pequeno lance de escadas e limpa a neve de sua roupa pesada.
Brenda respira fundo e abre a porta pesada da taverna. Ela sente o calor. Não o calor de uma lareira: calor humano. Suor. Cheiro de cerveja. Brenda não acredita. Ela olha em volta pelo amplo salão da taverna. Então atina de voltar e ler uma das placas que ignorou na entrada. A placa diz
“É hoje!
XIX Choppada Universitária da Dungeon Espiral
com Sammael & Belzebu
Open bar de Nova Schin até às 22h”
Os olhos incrédulos de Brenda passam pela placa repetidamente. Boquiaberta, ela volta a entrar na taverna e é atacada pela música altíssima e pela luz azulada de um holofote móvel que vem do palco do outro lado do salão lotado. Brenda caminha por entre dezenas de jovens que dançam ao som de uma banda liderada por uma dupla, esbarrando nela como se ela não existisse. Ela olha para o palco como se aquilo fosse uma miragem, um pesadelo.
Dois homens cantam animadamente. Ambos usam roupas xadrez, calças jeans apertadas e botas. Um deles usa um chapéu de cowboy. No rosto, os dois carregam maquiagem de corpse paint, como se raízes pretas saíssem de seus olhos, contrapondo com seus rostos muito brancos. A música é uma mistura de sertanejo universitário com black metal cuja letra tem um trecho que diz algo como “Ei, garçom, traz uma cerveja/Hoje eu tô louco pra queimar umas igreja”. Brenda fica estática no meio dos universitários que cantam e dançam e bebem. Como se não bastasse, o cantor do chapéu de cowboy parece começar a olhar pra ela de um jeito diferente. Ela fica sem reação.
Depois segue pro bar e pergunta se tem qualquer bebida quente.
🌀
Ah, o Valdir ainda tá lá chorando pelos cantos sem fazer nada.
🌀
Uma semana depois da chegada, o colega de Herivelto medita na rampa sob a luz dourada do sol poente. O rapaz largou sua camisa floral e a calça branca para usar a roupa simples das pessoas-pássaro. Sua posição de lótus ainda não é perfeita, mas ele mantém o tronco ereto como sua namorada ensinou, do mesmo jeito que ela ensinou as crianças-pássaro dela. Ele sente o restinho de calor do sol tocar sua pele.
Passos leves e tranquilos na terra. Se aproximando dele. Sua atenção sai do lugar desconhecido onde estava e se volta para o mundo tátil. Ele abre os olhos sem pressa e vira a cabeça para encontrar Herivelto. Um Herivelto confortável dentro da roupa feita pelas pessoas-pássaro.
— Te atrapalhei? — diz ele. — Peço escusas.
— Não, não. De forma alguma.
Uma pausa. Ambos olham o pôr do sol no vale, as montanhas altas e finas e as pessoas-pássaro que as rodeiam.
— Você não vem mesmo?
O ex-colega de Herivelto respira fundo antes de responder:
— Não. Não consigo mais. Meu mundo agora é este. Eu me transformei demais para seguir como estava.
Herivelto concorda com a cabeça.
— De fato. Muitas transformações aconteceram.
Uma brisa lhes acaricia a pele. O rio cantarola ao longe. Crianças-pássaro brincam no ar.
A carona de Herivelto se aproxima.
— Blz, flw vlw
A carona de Herivelto são três homens-pássaro trazendo seus contratos do Khepresh no bico enquanto carregam uma rede, na qual Herivelto se atira e então estala os dedos gritando “bora vagabundos” para fazê-los levantar voo e desaparecer do vilarejo.
つづく
Garrulice