Hoje, em mais um episódio da série DOMINGOS DE CINEFILIA: Rio, Zona Norte e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos. Algumas impressões a seguir:
O primeiro é um clássico do Nelson Pereira dos Santos, de 1957, e me parece ser bem um fruto da época. Dá pra ver inspirações no neorrealismo italiano e a relação entre pequenos universos bem divididos entre si, sendo um mais “polido” e outro mais “povão”, me lembra A Pointe Courte, da Agnes Varda, um outro clássico pré-Nouvelle Vague que saiu dois anos antes do filme brasileiro. E existe nele um fatalismo que me lembra algumas outras obras-primas mais ou menos da mesma época, como O Beijo Amargo e No Silêncio da Noite.
Esse filme meio que é o Brasil. Não queria usar a palavra “retrato” mas acaba sendo, no cômputo geral, exatamente isso. É a experiência brasileira resumida em pouco menos de uma hora e meia. A alegria, a música, a luta diária, os sonhos sempre quase realizados, a precariedade do sistema de saúde.
Grande Othelo e Paulo Goulart estão BEM DEMAIS, e as outras atuações parecem funcionar muito bem também, apesar de a maioria dos coadjuvantes aparentemente não serem atores profissionais (não faz diferença se são ou não). A relação entre Othelo e com os personagens de Goulart e de Jece Valadão poderiam render a alcunha de "Vamo Marcar - O Filme”.
Esse é, até agora, o filme mais antigo do Almodóvar que eu vi. Tendo prestigiado alguns dele mais recentes, é curioso perceber como é tudo muito mais ESFUZIANTE. O roteiro, as atuações, as cores. Também parece ter a ver com a época, essa vibe final dos anos 80 também me remeteu a Faça A Coisa Certa, do Spike Lee (ambos filmes de alguma forma periféricos).
O filme começa parecendo um troço mais experimental e abstrato mas depois engata de vez na comédia de erros e só vai acelerando. De certa forma ele parece até ignorar as ideias visuais mais espalhafatosas do início, aos poucos. Depois vira um negócio rocambolesco e teatral e é sobre isso mesmo. Dá pra dizer até que deixa de ser sobre como a personagem principal vai deixando pra trás visões que ela tem de si mesma (que vêm em filmes que ela dubla e propagandas em que ela atua), o que tem a ver com a questão do amante que a deixou, pra tomar o controle da própria vida.
A quem interessar possa: o primeiro tem no TeleCine Play e o segundo tem no Mubi.
Este vídeo-ensaio sobre Succession:
Ele fala sobre como a câmera age na série, algo sobre o qual eu já vinha pensando. Pense em The Office, aquele estilo documental, os closes na cara do Jim, etc. É mais ou menos a mesma proposta, só que mais CHIQUE (pois personagens milionários e usando película em vez de digital) e frequentemente pensada pro drama e a tensão da cena e não só pro humor.
Iris e eu vimos Tempo, novo do Shyamalan, e sobre ele deixo as palavras do Arthur Tuoto sobre o filme:
É muito mais difícil - e elegante - ser um autor que esconde as suas escolhas a partir do efeito total delas do que ser um autor que só sabe fazer um grande plano quando o plano está gritando que é um grande plano.
Qualquer outro diretor-autor contemporâneo da moda transformaria essa premissa numa pirueta formal cheio de sacadas, mas quando o cara sabe o que está fazendo tem noção de que focar no essencial é muito mais importante (e difícil…) para o drama fluir sem histerias e com uma naturalidade impactante.
Como estamos cinematografiquinhos hoje não é
Jurandir Fevereiro sempre foi um matador de aluguel. Nunca conseguiu ser outra coisa. Se ele tem uma missão, ele a cumpre. Custe o que custar. Implacável. Exceto em um caso ou outro. Tem vezes que, né. Mas Jurandir não gosta de lembrar desses momentos. Porque para todos os efeitos, ele é um...
Ele já o era, naquela época. Início de carreira. Pegava qualquer trabalho que surgia na sua frente. Não que hoje em dia isso seja diferente, mas até então ele não tinha experiência. Mas tinha vontade de trabalhar. Alguma vontade. Não que hoje em dia isso seja diferente...
Fora contratado por um homem fanático. À primeira vista, uma pessoa completamente normal. Quarenta e tantos anos, sempre com calor (botava a culpa no clima do Rio de Janeiro), usava uma camisa azul-clara estampada um arquipélago de manchas de suor, as calças cáqui balançavam no vento. Emocionava-se quando falava do seu time de futebol do coração. Era, afinal de contas, um fanático. A fúria com que falava da diretoria do time saltava pela baba dele, que voava no rosto de Jurandir e ficava acomodada nos cantos da boca cada vez mais ao longo da conversa entre eles, que aconteceu num boteco da Zona Norte.
- O único jeito – dizia ele, pontuando as palavras com um movimento da mão que lembrava um movimento de pinça. – desse time funcionar é se alguém matar o presidente do clube. Isso vai mexer com a cabeça de todo mundo, você me entende? Porra. É o único jeito. – fez uma pausa. – Troca o presidente, pega um técnico bom, contrata melhor. Sabe? Não é difícil, mas os caras não fazem! Os caras simplesmente não fazem, Jurandir! Ô Carlão, vê mais uma por favor.
O homem admitia seu fanatismo mas jurava que não era louco. Só fanático. Por isso, ele mesmo não iria matar ninguém, só iria mandar matar. Então, tudo bem. Jurandir não se importava, no fim das contas. O homem pagou a entrada e ele foi trabalhar.
Havia muita movimentação no Centro de Treinamento naquela noite, muito mais do que Jurandir previra ou achara necessário. Torcedores aglomerando, repórteres rondando como urubus, empregados do clube fugidios. Pelo que o contratante disse a Jurandir, naquela noite seria anunciado o novo técnico do clube. O clima era pesado. Jurandir procurou por um ponto onde pudesse entrar no CT, mas não encontrou. Procurou um ponto onde pudesse atirar com um fuzil de precisão, subiu num muro, encontrou uma laje e ficou por lá, mirando, até encontrar o local certo. Descobriu a sala de reunião.
Homens de camisa conversavam de fora muito mais descontraída do que Jurandir esperava, exceto por um ou dois mais preocupados. Entre os últimos, estava o presidente. Algumas ligações foram feitas. O presidente parecia preocupado. Dirigiu-se à grande janela da sala, com um copo na mão. Jurandir mirou. Estava tudo pronto. Destravou o gatilho. Respirou fundo. Travou a posição. O presidente deu um passo pro lado e fechou a cortina. Jurandir soltou a respiração. A cortina não permitia ver nada além da bandeira do clube.
Continuou a fuçar pelos lados do CT, não havia outra possibilidade. Era entrar no centro e se infiltrar até chegar na sala ou esperar o presidente dar a entrevista coletiva. Uma morte em frente às câmeras. Era tudo que seu contratante queria. Seria isso.
Jurandir desceu e ficou esperando, do outro lado da rua, atrás dos repórteres e torcedores. O burburinho não parou. A tensão era quase palpável. Jurandir observava tudo, com seu traje preto, completamente despercebido por todos, como um fantasma tal qual o que assombrava o clube.
A expectativa chegou ao ápice quando o presidente saiu do CT e posicionou-se em frente ao biombo com várias bandeiras do clube e logotipos de patrocinadores, ao lado de outro dirigente. Câmeras e microfones foram apontados pra ele, como Jurandir estava prestes a fazer. A mão, suada, estava pronta. Torcedores, logo à sua frente e atrás dos repórteres, cercavam o presidente, nervosos. O presidente tinha olhos que pareciam olhar para a própria morte. O rosto angular e o nariz agudo pareciam formar uma seta. Jurandir deu um passo na direção dele, procurando uma posição. Enfiou-se no meio dos torcedores. Estava chegando nos repórteres. Não tirou as mãos de dentro dos bolsos da jaqueta. Ninguém conhecia aquela pessoa, ninguém se importava com ele. Ele tentava forçar a passagem com os ombros, mas nem os operadores de câmera nem os repórteres o deixaram passar. Outros repórteres tentaram tomar o lugar dele como se a física permitisse dois corpos ocuparem o mesmo lugar no espaço. Ficara esmagado entre dois operadores de câmera. Bastava levantar o braço e puxar o gatilho. Havia cabeças em sua frente mas nada que fosse atrapalhar, o alvo estava óbvio. Apertava o revólver com nervosismo.
Foi quando o presidente declarou, sem qualquer tipo de emoção:
- O novo técnico do Flamengo é o senhor Waldemar.
- SACANAGEM, PORRA! – berrou um torcedor. Os berros dos torcedores se tornaram um monstro sonoro de raiva e frustração. “O caralho”. “Oswaldo vai comandar pelo telefone”. “Babaca”. “Waldemar é o caralho”.
O presidente seguiu de boca entreaberta, tentando entender o que acontecia na sua frente.
- Por que o Waldemar? – perguntou um repórter. O presidente não respondeu. Mas respondeu aos torcedores:
- Bom, a gente tem que pensar no melhor pro Flamengo. – justificou enquanto a torcida berrava contra ele. - Achamos que a torcida é muito importante ao Flamengo... tá certo? São dez jogos hoje. (Waldemar é o caralho) E... o... (vai comandar pelo telefone rapá) Waldemar é uma pessoa de confiança nossa e
- FORA WALDEMAR! AH AH AH! FORA WALDEMAR!
Jurandir parou e deu um passo pra fora. A discussão continuava. Ele tirou a mão do bolso. Sem o revólver. Olhou a situação e tomou a decisão de não atirar naquele homem. Ele provavelmente já estava morto.