Não Sei Desenhar #06 - 08/10/21
A autora dessa belíssima metáfora é a minha não menos belíssima namorada Iris (que tem um Instagram sobre ABNT, artigos acadêmicos e demais questões relacionadas), enquanto conversávamos sobre esse rolê todo de ter ideias durante o processo de escrita, tal qual o Alan Moore fala numa entrevista:
Esse é um experimento que talvez muitos escritores podem tentar: comece escrevendo sobre um assunto do qual você não sabe muito, sobre o qual você não tem opiniões. Comece a escrever. Você descobrirá que não tem nada perfeitamente planejado em sua cabeça e você está escrevendo, você descobrirá que as palavras estão se formando praticamente das pontas de seus dedos pras teclas do teclado, as ideias estão se formando, ideias que você nunca teve antes. Justaposições estão lhe ocorrendo. Sua mende entra num estado muito diferente.
ESSE TROÇO AQUI parece uma boa ideia. Veja bem: ovinhos. De amendoim. Sabor Wasabi. Na prática:
Pra quem tá acostumado e é fã incondicional de amendoim japonês ou outros amendoins saborizados e curte wasabi, a decepção é certa. Não tem gosto nem de um nem de outro. Tem a picância do wasabi, mas eu é que não vou tacar o ovinho no shoyu pra ver se a combinação dos dois funciona como na vida real. O que me pegou mesmo foi a total ausência do gosto de amendoim, o contrário do amendoim japonês tradicional onde a casquinha meio que reforça o sabor original e transforma tudo numa experiência gastronômica do mais alto nível. É um caso onde o produto tem o gosto da sua própria origem: um troço de plástico confeccionado industrialmente a toque de caixa. Se for pra comer plástico, melhor ir pra um Cheetos ou Pipoca Beija-Flor da vida. Nota: 4/10.
Um ligeiro passeio por ilustras de artistas responsáveis pela estética da Capcom principalmente dos anos 90. Pra quem é do tempo dos fliperamas e das revistas de videogame. E pra quem não é também. Mas vocês entenderam.
Ele é um assassino profissional. Ele tem um contrato. Em sua missão atual, além de matar uma pessoa, ele teve também que resgatar a glande podre de uma figura história do estado de Minas Gerais do século XIX. Sem dúvida, ele é...
Por via das dúvidas, Jurandir despachou a mala que trazia de sua viagem a Minas. A mala continha, além de umas cinco peças de queijo canastra (algumas ele ia vender, outras para consumo próprio), doce de leite em barra, cafés e cachaças, a valiosa caixa de madeira que continha a Cabeça de Tiradentes. Passou incólume nos aeroportos de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro apesar de um nervosismo que, com um olhar um pouco mais rigoroso dos trabalhadores da aviação, entregaria que ele estava sim com uma carga no mínimo suspeita. Seus olhos varriam os lugares por onde passava, o tempo inteiro, mas não percebeu que estava sendo seguido.
Saiu do aeroporto Santos Dumont e foi direto para um hotel em Copacabana, num quarto que o senhor Zedequias tinha alugado para ele. Combinaram de Jurandir entregar a Cabeça no outro dia, pela manhã. Com a noite livre, Jurandir jantou uma pizza num bar de esquina e ficou vendo TV no quarto do hotel. Frequentemente, seu olhar desviava do aparelho para a caixa com a Cabeça, que manteve ao seu lado o tempo todo, na cama, por precaução.
O que realmente faria a Cabeça de Tiradentes? Ele só tinha informações esparsas. Por que aquele bando de gente velha e rica queria tanto essa parte do corpo desse homem? Será que funciona somente em velhos?
Decidiu abrir a caixa e ver a Cabeça. O cheiro de podridão surgiu antes da visão do membro, que parecia lhe dar as boas-vindas como um mascote de parque de diversões. Um sorrisinho naquela cabecinha verde que tinha tudo pra se desfazer a qualquer momento, após qualquer movimento mais brusco. Jurandir se perguntou como aquele negócio teria durado tanto tempo. Para além da curiosidade mórbida, Jurandir sentiu um cheiro que lhe chamou a atenção. Havia sem dúvida o fedor da carne velha mas havia também notas de algum tipo de perfume doce que Jurandir relacionou com o perfume da sua avó. Um cheiro de almofada de lã. Definitivamente, um cheiro de velha. De qualquer forma, não parecia um cheiro natural.
O que estava fazendo? Fechou a caixa e voltou para a TV. Três minutos depois, olhou de novo para a caixa. Balançou a cabeça, tentando voltar a si. A TV por acaso estava no seu campo de visão, mas não estava assistindo propriamente. Que cheiro era aquele?
Teve vontade de se masturbar algumas vezes – mais do que de costume. Na verdade, era mais do que uma vontade consciente, era uma pulsão. Talvez algo que estive até um pouco fora de seu controle. Em pelo menos duas das vezes em que brincou consigo mesmo, sentiu a presença da Cabeça de Tiradentes. Não achou aquilo muito normal.
Dormiu e teve alguns sonhos eróticos, coisa que não costumava acontecer com ele. Acordou ereto. Imaginou que assim devia ser a vida de Jorge Kajuru e sorriu. Tinha uma hora até o horário marcado para entregar a cabeça ao senhor Zedequias, então foi tomar um banho. Quando saiu, sentiu um vento gelado que até então não estava entrando no quarto mas não fez nada em relação a isso num primeiro momento. Colocou uma roupa e só então se deu conta que a porta que dava para a sacada estava aberta. Se deu conta que não sabia como era a vista de seu quarto e foi até ela. Dava de frente para um prédio residencial cinza e sem graça e para uma construção. Esperava mais do Rio de Janeiro. Ventava com alguma força e o frio do vento de repente se juntou ao frio metálico de uma arma encostando na sua têmpora.
- A cabeça. – disse uma voz grossa que parecia rasgar a garganta.
Jurandir ergueu as mãos e virou-se lentamente. Encontrou um homem careca vestindo uma camiseta preta e calça jeans rasgada. Os músculos pareciam querer saltar da camiseta e o homem sabia disso. Reconheceu a roupa: era o homem da moto de Ouro Preto. O homem fez um movimento com a pistola pedindo para Jurandir se apressar. Jurandir atravessou o quarto lentamente e foi até perto da porta, no frigobar. Dali, tirou a caixa de madeira, sem movimentos bruscos. Sua memória trouxe de volta o cheiro não-natural por um segundo.
Com a caixa à altura de seu abdômen, Jurandir parou. Virou-se com força e acertou a cabeça do homem com a caixa, que acabou caindo pro lado e atirou a esmo. Jurandir aproveitou o momento de confusão pra sair correndo. No primeiro passo, tirou o cartão-chave de dentro da fechadura e em dois passos estava fora do quarto, meio agachado. Empurrou a porta pra tentar trancar o homem lá dentro mas não conseguiu usar muita força, resolveu se preocupar em sair correndo pelo corredor. Agachado e com a caixa debaixo do braço, seguiu pelo corredor até os dois elevadores mas não quis esperá-los, foi direto para a escada. Dois tiros passaram por ele, próximos demais. Atropelou a porta de metal e saiu em desabalada carreira pelos lances de escada. Foram cinco andares de correria diante daquelas paredes brancas e sobre aqueles degraus cinzas que pareciam ser um eterno dejà-vu de si mesmas.
Chegou enfim ao térreo, empurrou a porta mas não saiu, esperou pra ver se via o homem. Olhou rapidamente de forma completamente desatenta, não encontrou ninguém pelo corredor que surgiu e então seguiu em frente. O corredor fez uma curva e deu na área de café da manhã do hotel. Era um salão amplo mas com um buffet de poucas opções, se Jurandir fosse dar sua opinião no TripAdvisor.
- Bom dia, amigo! – disse um senhor bonachão do outro lado do buffet. – Vai um sanduíche? Eu monto pra você.
- Há, eu vou querer um com presunto, queijo e alface. – respondeu Jurandir sem prestar muita atenção no que estava fazendo. Olhava pros lados, receoso. Mas era um sanduíche de graça.
- OK! Vou ali na cozinha buscar mais alface, tá bom? Já volto!
O homem entrou na cozinha enquanto Jurandir assentiu e seguiu andando pelo local. De um lado havia janelas grande e do outro havia uma pistola apontada para ele. O homem entrava correndo no salão. Jurandir atravessou o buffet para chegar no outro lado do salão e no meio do caminho catou uns pires que, sem muita opção, atirou contra o homem, que dava tiros de forma esparsa, sem querer gastar bala. Nenhum dos tiros acertava ninguém em particular no salão que tinha umas sete pessoas acuadas pela situação. Jurandir chegou nas janelas. Já tinha feito aquilo antes, sabia que podia dar certo. Apoiou-se numa mesa onde uma família tentava comer e saltou até a janela. Chegou nela todo torto, a barriga apoiada no parapeito. Tentou se ajeitar para atravessar da forma mais segura possível os dois andares que separavam ele do chão, mas um tiro acertou sua canela esquerda. Com a dor, deu um berro e se desequilibrou, caindo de bunda no chão, de frente para o salão. O homem veio na direção dele, sem pressa nenhuma, enquanto as pessoas fugiam ou se apertavam nos cantos do salão. Apontava a arma para a cabeça de Jurandir, que estava agarrado à caixa como se aquilo fosse salvar sua vida.
Olhou para a entrada do salão e, em vez de fugir, uma pessoa entrou: era Karina. Também trazia um revólver, que apontava para Jurandir. Caminhou sem pressa pelo buffet, com um sorriso vencedor no rosto.
- Jurandir, - disse ela. – Eu não quero fazer isso. Entrega a Cabeça. Você vai se livrar disso e vai ficar tudo bem.
Jurandir era um homem com uma missão. Abraçou a caixa e protegeu-a ainda mais, apertando-a contra seu peito, como se carregasse uma criança. Uma criancinha velha, podre e fálica com cheiro de vó.
Quando Karina chegou no meio do salão, em frente à entrada da cozinha, parou. Da cozinha, entrou um homem muito alto portando um fuzil.
- Jurandir, isso me pertence.
Jurandir reconheceu a voz. Agora sem os ruídos da ligação por Whatsapp, a voz do senhor Zedequias soava ainda mais decrépita, somada à imagem de um homem que vinha sendo empurrado em uma cadeira de rodas, com uns poucos tufos de cabelo mal distribuídos pela cabeça branca. O rapaz que empurrava a cadeira também trazia consigo um fuzil.
O homem que perseguia Jurandir desistiu dele e apontou a arma para o cara da cozinha enquanto Karina apontou para o senhor Zedequias.
- Você é desprezível, Karina. – vociferou o senhor Zedequias. – Que vergonha que eu tenho de ter contratado você, de ter você como secretária por todos esses anos.
- Ah, vai se foder, seu velho vagabundo. – respondeu Karina.
Ela ameaçou dar dois passos na direção do senhor Zedequias mas o rapaz que vinha com ele pegou o fuzil nas mãos e apontou pra ela.
- Melhor largar a arma agora. Não quero fazer bagunça aqui.
O senhor Zedequias lentamente tirou um revólver de dentro de seu terno. Parecia precisar fazer muito esforço pra segurar a arma. Apontou-a para Karina. Ela mirou para a testa dele. O rapaz mirou nela. O homem que tinha saído da cozinha apontou para o careca, que por sua vez apontava para o primeiro.
- Karina... – avisou o senhor Zedequias, lentamente.
- Saindo um sanduíche de presunto, queijo e alface!
Tiros aconteceram. Não se soube quem foi o primeiro, mas as balas voaram por todos os lados, de todas as direções, acertando buffet, teto, paredes, o homem com o sanduíche pronto, o senhor Zedequias, Karina. Vidros se estilhaçaram junto de berros desesperados e de uma salva descompassada de tiros. Todos (que podiam) correram, se escondiam, alguns atiravam uns contra os outros, outros tentavam se proteger. Tudo virou uma massa bagunçada de ações e reações muito rápidas difíceis de se descrever.
Enquanto aquilo acontecia, um homem mancava por uma rua do Rio de Janeiro, abaixo da janela do salão de café da manhã de um hotel, segurando uma caixa cúbica de madeira secular em seu colo como se sua vida dependesse daquilo.
Até então, Jurandir tinha uma missão. Ele era, afinal de contas, um profissional. Mas desta vez, ele quebrou o contrato.